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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

SER UM HOMEM FEMININO NÃO FERE O MEU LADO MASCULINO



“Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino”
(Baby do Brasil, Didi Gomes, Pepeu Gomes)

Não faz muito tempo eu soube de uma confusão armada por uma mulher na escola de educação infantil onde o filho dela estudava o maternal. Era a festa de aniversário de uma coleguinha, que levou bolos, doces e balões para celebrar o dia dela com a turma. Ela não levou balões azuis, apenas cor de rosa, e o filho dessa dita mulher quis levar uma bexiga para casa assim mesmo (apesar da cor). A babá foi buscar o garoto, que quando chegou ao lar, todo alegre, com o balão na mão, viu sem entender a mãe se revoltar e voltar na mesma hora à escola para tomar satisfações. O barraco só não foi pior porque as crianças já tinham ido embora. Ao voltar para casa, a raiva se voltou ao filho e depois de ter dito que aquela cor não era coisa de macho, ela certamente deve ter dito "homem que é homem não chora", ao ver o filho aos prantos.

Poderia dizer que é assim que as pessoas começam a se tornar machistas, mas na verdade não é. O buraco é mais embaixo, ou melhor, mais antigo. A opressão de gênero tem início no mesmo período em que o homem começou a dominar técnicas para literalmente se apossar dos territórios e se iludir ser dono de onde (e de quem) pisa. Através da força, o menino subjuga quem não tem a mesma força física ou não é “detentor” dos mesmos bens, e entre as vítimas principais estão, sobretudo, as meninas.

Antes dos garotinhos começarem a brincar de oprimir e cometer genocídios nefastos para provarem a si e aos outros que são grandes, quando a humanidade sobrevivia da coleta, a solidariedade aferia mais grandiosidade às praticas das pessoas. Nesse período, não por acaso, a figura feminina era endeusada. Mas não era um poder de cima para baixo, e sim uma relação circular de poder, horizontal, de quem prefere olhar ao outro e à outra a mesma altura, e não com a cabeça inclinada para baixo.

E se o branco é superior ao negro, tudo que vem do negro é pecado, criminoso ou feio; se o ariano é superior ao judeu, todo judeu merece sofrer o que o ariano quiser; se sulista é melhor que o povo do norte-nordeste, tudo que vem da parte de cima do mapa é coisa de pobre, mal educado, de quem não sabe votar, desse povinho disposto a invadir a minha terra me roubar. Ou seja, a mesma lógica vale para o homem em relação à mulher. Numa sociedade patriarcal, tudo aquilo que é atribuído à mulher é inferior, merecedor de chacotas e indigno dos seres superiores: os meninos. Na verdade, isso tem até um nome: Misoginia, ou seja, ódio a tudo que vem do lado feminino da vida.

Já se perguntaram por que as meninas usam calça e os meninos não podem usar saia? Já se questionaram por que a mulher diz que a outra mulher é bonita e os meninos não podem? Já se intrigaram com o fato de que menina chegando com balão azul em casa não dá confusão, mas os meninos não podem? Já se inquietaram com o fato do homem gostar de ver mulher pegando mulher, mas não o é assistir a homem fazendo enxerimento com homem? Está tudo interligado. Tudo relacionado ao feminino é tolerável nas mulheres, ainda que considerado inferior, mas, homem traindo a dita superioridade herdada de Deus é inconcebível. Por isso gays , travestis e transexuais são os maiores alvos dos homofóbicos violentos em relação a lésbicas.

Na verdade, como diz a feminista e teóloga biblista Tea Frigério, o patriarcado não fez mal somente a mulheres. Fez mal também ao homem, que negou o lado feminino que todos nós possuímos. Ao homem restou o papel de ser frio, calculista, o que não chora, e à mulher foi colocado o papel de ser mãe, tolerante, a do sim, que não arrota, não peida, e tem de sempre ser linda aos padrões eurocêntricos; sendo que isso tudo é apenas uma capa, pois todos nós somos dotados de ternura e força, sensibilidade e ousadia, carinho e agressividade.

Então o homem mesmo se colocou nessa prisão de não poder demonstrar carinho, sobretudo para com outro homem, nem sensibilidade demais, sob o risco de parecer gay. Ou melhor, de demonstrar que possui algo daquele ser “inferior” do outro sexo. Portanto, aceitar que há uma menina em todo menino pode sim começar a provocar novas relações de poder, uma outra visão de mundo onde a diversidade  e a tolerância podem ser acolhidas com um doce abraço de menina e (até que não reprimam) de menino também. É preciso entender que um balão rosa é mais recomendável aos meninos do que reproduzir as práticas milenares do patriarcado opressor.

sábado, 13 de outubro de 2012

Círio de Nazaré: Ao colo da Deusa



Parafraseando Heidegger, aonde quer que vamos estamos indo de volta pro colo da mãe. O Círio de Nazaré é muito disso. É uma espécie de carnaval de desobediência a nossa sociedade erguida sob forte influência do patriarcado, aonde foi forjada a imagem Deus como Pai. Como o menino, mesmo acreditando que ser dançarino é coisa de veado, mesmo assim vai lá e dança, nós acolhemos Nossa Senhora como o rosto materno de da divindade a qual tentaram limitar nas catequeses ou nos cultos. Porque Deus jamais vai deixar de ser a imagem e semelhança do povo. O Círio de Nazaré é o culto à mãe, à Deusa, ao sublime rosto feminino da humanidade.

Houve um tempo em que a humanidade era nômade. Nessa época as pessoas viviam de coleta, e tudo era comum entre todas e todos. Ali a figura cultuada como sagrada era a da Deusa, e os símbolos religiosos remetiam a partes típicas da mulher (seio, vulva, útero, etc.). Essa era a época do "Poder Com". Depois o homem passou a dominar técnicas de agropecuária, passou a ser senhor de territórios, até esses se tornarem parte de Estados e depois Impérios. A partir daí o homem instaurou o "Poder Sobre". O Deus então matou a Deusa. Deu-se a era dos tais homens fortes, na qual a mulher precisa ser secundária, dona de casa, mãe dos filhos, e só. Mais uma propriedade dos homens.

Mulher pagando promessa pela casa própria alcançada.
Há quem diga que a devoção a Maria de Nazaré é culto a Jesus, querendo limitar a figura mariana como sendo apenas mulher do sim e do silêncio. Alguns católicos doutrinalistas até podem ter essa fé, mas vai explicar ao fiel que só vai à igreja em batizados ou mesmo a umbandistas, aos proibidos de ser o que de fato são nas paróquias (como gays, lésbicas, travestis, etc.) que Maria intercede ao filho, para este levar o pedido ao Deus Pai, para só depois atender os desejos dos fiéis. Arrisco dizer que a maior parte do povo nem liga para essa “burocracia celestial”. Acreditar no poder da Mãe faz ano a ano milhares de romeiros caminharem quilômetros de outras cidades, uma multidão se espremer numa corda,  ou percorrer a romaria de joelhos. Tudo para pagar uma promessa, ou, simplesmente, pela mãe. Para a grande massa Nazica é poderosa e faz milagre. Pronto.

Trasladação - Procissão no dia que antecede o Círio, em que a santa vai até a igreja da Sé para sair à grande procissão
Saber que o festejo já dura mais de 200 anos e existe antes que a igreja do Papa o reconhecesse (chegando a proibi-lo em algumas épocas), é mais uma prova de como a figura da mulher plena jamais morreu. Além disso, é demonstração generosa de qual forma a força da tradição pode existir sem as amarras do tradicionalismo. Assim como ocorre na devoção à indígena Guadalupe ou à negra Aparecida, o culto à "Senhora de Nazaré" nasceu da força popular. Óbvio que a igreja tenta colher os louros, delimitar elementos profanos e sagrados na festa, mas não tem jeito: o Círio é do povo. Os elementos contidos em toda a grandiosidade do Círio, como corda, brinquedos de miriti, pratos típicos e etc., são em grande parte desobedientes às doutrinas carcomidas da igreja de Roma – que até hoje proíbe a mulher de ser sacerdote, por exemplo.

O Círio, embora também seja católico, é uma representação do quão a humanidade ganha resgatando a figura da deusa, pois a festa é sobretudo sinônimo de diversidade. Na programação (não oficial) do Círio há a Festa da Chiquita (de homossexuais), o Cirial (festival de rock independente promovido por muitos ateus), o Auto do Círio (encenação ao ar livre feito por artistas, cuja maioria nem católico é), Arrastão do Círio (festa folclórica) além de homenagens das religiões afro, da participação de fiéis de religiões orientais, etc. O Círio de Nazaré é a nossa homenagem à mãezinha. É deitar no colo dela e receber cafuné. É a devoção ao rosto materno de Deus, a face da inclusão e da tolerância.

*Todas as fotos são do meu amigo e fotógrafo Celso Rodrigues.

**(Texto originado da entrevista que fiz com a Xaveriana Ir. Tea Frigerio, assessora do CEBIestudiosa da Bíblia na Ótica da Mulher)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Rótulos



"Só não se perca ao entrar
no meu infinito particular"
(Antunes, Montes, Brown)

Os rótulos não preenchem a totalidade nem da mais rasa das pessoas. Certamente porque ninguém é raso a ponto de não ser extremamente profunda/o.
As pessoas são idiotas geniais, pacifistas atrozes, artistas insensíveis, safadas românticas, sábias arrogantes, e tudo mais disso que nem é mesmo isso.
Se as pessoas não fossem mais do que podemos compreender, não existiria literatura e a forma primária da escrita seria uma bula de remédio; e não existiria música, apenas gritos de desespero; e provavelmente não criaríamos arte antes de inventar a fórmula de Báskara.

domingo, 9 de setembro de 2012

O Descobrimento do Universo

Texto feito em parceria com a blogueira Alana, do blog Palavreando...



Ele escrevia contos de fada sobre ela. Fazia daqueles cachos castanhos o travesseiro das suas palavras. E de lá, elas brotavam sorrateiras para cada parte do violoncelo, que para ele, era o corpo dela.

Ela aceitava aqueles olhares com a culpa de quem foi criada num jardim aonde as flores eram proibidas de desabrochar. Tinha vontade de ir, mas só quando já estava de volta. Sonhava com fogo sem ao menos poder ter sido fagulha, e pedia perdão a Deus por imaginar que todas aquelas notas que ele tocava eram sempre lá.

Nas sobrancelhas levemente arqueadas pelo olhar temeroso, ele a observava como se as palavras fizessem dela pôr-do-sol, início e fim ao mesmo tempo, abrindo espaço para um eclipse que aconteceria adiante. Para ele, nas pupilas dilatadas ela era o dragão fêmea, que inescrupuloso cuspia fogo e fumaça em meio ao quarto vazio de tudo que não fosse os dois.

Ela então passou a olhá-lo como quem abre a porta e a tocar nele como quem abre as pernas. Sorria de tudo que ele falava, mirava tudo que ele fazia, mas parecia que quanto mais ela andava menos saía do lugar. Era pecado demais chegar e dizer que o queria. Na verdade, ela se culpava pelo simples fato de querer tanto, mas aquela brasa não parava de incendiar - e um fogo que ela já não conseguia acreditar que aquecia os dois. Por que ele não a tomava para si, se ela já era dele?

Ele, confuso em meio àquilo que o corpo dela lhe dizia, se perdeu. Afundou-se no conto de fadas do qual sonhara fazer parte, e pensou ver sua musa musicista perder-se também nas notas, no fogo e no colchão, deixando-o desnorteado. Ele fugiu então pelos labirintos de onde viera até cruzar com os primeiros olhos castanhos que o esperavam na esquina. Estes olhos, que de musa não eram, trouxeram-no à realidade que não queria viver. Agora, era só o corpo, a culpa,  a puta, o gozo, a roupa, a polpa da noite que chegava ao fim.

Restou a ela a rua da dor que todos percorrem quando a paixão é via de mão única. Ele e a outra. Ela consigo. Ela, ela mesma, e ele nas lembranças. É o que ela tinha, e o que ela era conforme se descobria. Todos aqueles desejos fizeram com que ela achasse com as próprias mãos o caminho do desejo em si mesma. Ela sonhava e a mão descia, apalpava, esfregava. O dedo dentro. A mexida; o contorcer; o contorcer; o mexer; o entrar; o arreganhar e apertar de pernas; o gemido que escapava; aquilo que veio lá de dentro quando ela finalmente chegou. Ao abrir os olhos depois de experimentar o orgasmo, ela viu os olhos que a observavam pela fresta da porta que esquecera aberta. A mãe, ao perceber-se flagrada, foi rezar como quem sente inveja, e a moça sentiu a vergonha de quem não se arrepende.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Igreja Como ela é - Ela e Eles

Inspirado na Obra de Nelson Rodrigues, conto aqui histórias que deveriam ser mentirosas, mas não são





Era a missa de casamento dela com ele. Ele, o noivo, estava no altar todo contente. De certa forma, aquele momento era uma espécie de troféu para quatro anos tentando conquistar aquela moça linda que, apesar de sempre ter sido solteira e demonstrar carinho por ele, jamais quis namorar. Mas ele conseguiu finalmente emplacar o namoro depois do primeiro e inacreditável beijo. Menos de duas semanas depois disso já estava noivo. Passado um mês, lá estava ele. No altar. Orgulhoso de si próprio. Um vencedor.

Diante do noivo, ele: o padre. Como era o único presbítero daquele lugarejo, não havia outro a não ser ele para celebrar aquele matrimônio. Claro que havia alguns fofoqueiros que só estavam naquela igreja pra procurar defeitos, é verdade, mas todo mundo aparentava felicidade. Menos o padre. “O que o senhor tem? Está passando mal?”, perguntou uma madrinha do altar, pouco antes da cerimônia começar. O padre, sempre faceiro, estava muito sério. “Senti uma pontada no coração, mas não se preocupe. Vai me fazer bem celebrar, tenho certeza”, respondeu, já se saindo para a sacristia afim de vestir a batina.

Ao lado dele, o noivo, e um pouco abaixo dele, o padre, estava ela, a noiva. Ela não chorava. Não sorria. Estava séria. Prestando bem atenção ao que o presidente da celebração falava. A cerimônia seguiu normalmente. À medida que o tempo passava, o semblante dela ia mudando, de passividade à raiva. Ele, o noivo, não notava. Estava muito feliz. Ele, o padre, parecia olhar pra tudo menos nos olhos dela. Conforme o rito já conhecido, ele jurou fidelidade a ela na tristeza, na doença e nas outras coisas. Depois do “aceito”, dele, o noivo, foi a vez dele, o padre, perguntar a ela que antes de responder puxou uma arma debaixo do vestido.
...
Era uma tarde quente da Amazônia quando finalmente o novo padre chegara ao vilarejo. Recém-ordenado, ele foi visitar a casa da coordenadora da comunidade, orgulhosa do fato de que todos os cinco filhos, quatro homens e uma mulher, eram lideranças da igreja. Antes mesmo que o presbítero chegasse, ele já havia se comprometido em ir primeiro a casa dela e depois ir à igreja, tamanha era a moral da mulher. Os filhos na mesa batiam papo com o sacerdote. A filha ajudava a servir. Num desses momentos a moça e o sacerdote se encararam. E ninguém viu quando ele chegou perto dela na cozinha, com o coração palpitante, e sussurrou na orelha escondida sob os cabelos sedosos "você é muito linda!". Ela não fez cara de espanto, ou de irritação. Ela sorriu discretamente desviando o olhar. E ele teve as boas vindas que queria.
...
Ela sentia dor. “Quer que eu pare?”, perguntou ele, todo preocupado. “Pode vir, mas vem devagar, por favor. Não tenho toda a sua a experiência”, respondia ela, recém-desvirginada, a ele, o padre. Antes disso, ele já tinha dito saber que aquilo não era certo, mas estava apaixonado, por isso não conseguia ficar longe dela. Ela disse à mãe que iria à capital. E para a comunidade o padre estava em retiro. Se encontraram numa cidade a 100 km dali. Local onde seria ponto de encontro semanal dos dois a partir de então.
...
Ele, o pretendente, era muito querido por ela, a coordenadora da comunidade. Ela queria que a filha casasse com ele. Posses. Trabalhador. Família boa. Partido melhor não podia haver. Ela, a filha da líder comunitária, não o maltratava por causa da mãe, mas achava ele um babaca. Chegava lá falando de como fez pra comprar o carro novo, como era linda a fazenda, como era viajar de jatinho. Quando isso a irritava em demasia, mais tarde, depois que ele ia embora, ela, a amante do padre, costumava entrar pelos fundos da casa paroquial, e levar tapas na cara, puxadas no cabelo, mordidas no cangote e soltar berros sussurrantes de “Ai meu Deus!” involuntariamente enquanto gozava.

...
A menstruação atrasou. De repente ela viu a chance de finalmente ficar com o ele, o padre. “Eu não posso assumir essa criança! Sou filho único e minha mãe não aguentaria tanto desgosto”, inventou a melhor desculpa que pôde. Durante duas semanas ela tentou convencê-lo de que poderiam ser felizes, e ele já não conseguia mais ter criatividade para desculpas. Então ela, a futura mãe solteira, resolveu tomar uma medida desesperada. Aceitou namorar com o panaca do pretendente, e aceitou casar, desde que fosse logo. Ela arranjou tudo para o padre não ter tempo de fugir ou arrumar outro religioso para presidir a celebração. Ela não queria esconder o filho ou coisa parecida, queria provocar ciúme. Ela aguardava ele falar a qualquer momento pra parar com aquilo.

...
Com a arma na mão, ela disse pra ele confessar que a amava. A igreja toda gritando, a velharada correndo, gente desmaiando, o noivo se mijando, e o padre lá, covarde como era, fingindo não entender nada. Aliviava o coração do homem de batina saber que ele ao menos morreria ali, sem ter de conviver com aquela culpa. Diante do silêncio dele, o padre, e das calças mijadas dele, o noivo, o tiro. Seco. Escorreram do padre, as lágrimas. Do noivo, mais mijo. Pelo vestido, o sangue. Com um só tiro, várias vidas se perderam.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caiamos em tentação...

... a única coisa que pode ser nova
é nenhuma regra ter.
É nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobeder. Nunca reverenciar.
(Belchior)
O que nasceu primeiro, o pecado ou a lei? Não sei dizer. Mas o romance astral entre a obediência e a desobediência costuma parir as grandes e profundas mudanças da sociedade ao longo do tempo. Estou convencido de que, para o bem ou para o mal, jamais chegaríamos no ponto onde estamos não fosse a desobediência das regras postas. Acredito que a imoralidade de nossa alma nos faz transcender.

A maior figura de nossa era foi, no mínimo, desobediente, graças à desobediência às regras impostas pelas autoridades religiosas e políticas do seu tempo, e por obediência ao que ele acreditava ser um bem maior. Jesus era transgressor. O Evangelho, a "Boa Nova", é uma aula de desobediência. E atire a primeira pedra quem nunca desobedeceu uma regra que lhe pareceu absurda.

Um bom exemplo de que a desobediência desconstrói e constrói é a nossa gramática desgraçada - no sentido de ser desprovida de graça mesmo. Ou como acham que farmácia deixou de ser pharmácia? Como pinguim perdeu o peso chato da trema sem deixar de ser o que sempre foi? Como o chapeuzinho do vovô foi aposentado no por? Graças aos erros. À desobediência. A ortografia oficial, de tempos em tempos, acolhe os erros que aceita. Mas o povo continua "errando" e construindo os futuros "acertos" de amanhã..

Segundo o rabino Nilton Bonder, é nossa alma que nos leva a trair. Quando a menina foge de casa com o namorado; quando fumamos maconha dentro do quartel da PM; quando fazemos sexo dentro da casa paroquial; quando fazemos algo dito imoral, que só nos eleva, é nossa alma que nos está elevando a uma outra condição, que não esta, que não limitada, que não perecível.

A transcendência de nossa existência só é possível a partir da traição, da desobediência à regras que não criamos, e que, ainda que não admitamos, não aceitamos. Mais tarde, essa desobediência se torna regra, até que outro venha e desobedeça. E assim caminha a humanidade. Oprimindo através do corpo e as leis. Libertando atráves dos pecados da alma.Então, que saibamos cair nas tentações que nossa alma grite serem certas.

sábado, 5 de maio de 2012

Mel e Limão - Postagens Retrô 12


Tu és a calamidade de um abraço
O terrorismo de um sorriso
O aconchego de uma tapa.
A mais linda flor do nosso espinho...


Nunca pouco.
Nunca fácil.
Do tipo que manda, grita e bate.
Do tipo que chuta, morde e late.
És mulher que domina para ser dominada
por mãos grossas que a controlem,
uma língua que a inunde,
ou uma tora que a rasgue.
Abre-te apenas à masculinidade da desobediência,
a revolta de quem a jogue na cama;
a veia pulsante do mastro da indecência
(rígida, nervosa e insana).


Uma safada que faz carinho.
Mulher pura que goza.
Amiga; musa da punheta do próximo.
Sonhadora da alameda da loucura.
Terrível como a brisa,
és terna, como o mais doce temporal.


És tu, ela.


Mel e limão!

segunda-feira, 30 de abril de 2012

A Carta


Semana passada, mais precisamente na terça dia 24, eu fui cobri a maior tragédia que já presenciei. Nove pessoas morreram em um acidente horrível numa estrada que liga a Grande Belém ao interior. Tive meia hora pra traduzir o que vivenciei por mais de uma hora, num local recheado de dor, morte, e ao mesmo tempo de solidariedade e de gente viva, na tradução mais intensa que possa existir. Até agora, nesses quatro meses de jornalismo, foi o texto que eu mais gostei de ter escrito (Acidente mata 9 e fere 14 na Alça Viária.)

No dia seguinte eu fui enviado pelo jornal até a cidade das vítimas. Fui com o fotógrafo Sidney, mais experiente e muito bom profissional, e o motorista Gerson, que conhecia muito bem a cidade e foi um apoio e tanto. De lá escrevi a repercussão da tragédia na cidade (Tragédia comove milhares em Tailândia) e o velório e enterro de algumas das pessoas que havia visto mortas (Adeus às vítimas da Alça Viária). Também dei dois furos importantíssimos, nessa última matéria: o fato de que um dos motoristas, o que não teve culpa, sobreviveu quando todos achavam que ele tinha morrido, e o motorista do micro-ônibus, o irresponsável, que, além de ser acusado de ter provocado as mortes, ainda é sargento dos bombeiros.

O resultado veio em uma carta que um leitor enviou ao jornal, parabenizando as matérias. No primeiro momento, achei que seria muita presunção ficar falando disso. Por outro lado, a carta foi publicada no jornal em que trabalho, no último domingo. Portanto, não fui eu quem a divulguei, e seria muito esnobe de minha parte achar que isso não é bom o suficiente que não mereça ser comemorado. Por isso, partilho com vocês a carta que ele enviou. Quem quiser ver as fotos e a edição como ela foi feita, pode procurar matérias no caderno de Polícia nos dias 25 e 26/04 e no caderno de Cidades no dia 27/04 (cuja foto de capa, é uma das fotos mais impressionantes que já vi publicada nos últimos tempos, na mesma que exibo aqui) na edição eletrônica disponibilizada no canto superior direito no site do jornal.

Publicação da carta
UMA VERDADEIRA AULA DE JORNALISMO

Carta ao leitor publicada no último domingo (29) e escrita pelo professor Marcelo Andrade.

Acompanhei, com grande atenção, a excelente cobertura que o DIÁRIO deu ao acidente na Alça Viária, em que morreram 9 pessoas  de Tailândia. Quem leu as páginas e páginas dedicadas à tragédia certamente teve a impressão de estar lá, ao vivo, conferindo o que os jornalistas tão bem traduziram em textos e imagens.

E o que mais me impressionou foi o fato do motorista da carreta ter escapado com vida, sendo a que cabine do veículo foi destruída, esmagada. E as palavras dele disseram tudo: "Só pode ter sido coisa de Deus". Por outro lado, impossível não se comover com a dor das famílias que perderam seus entes queridos. Também me emocionei com a história daquele senhor que perdeu a esposa no acidente e sobreviveu, em meio àquele pesadelo.Disse ele que só lembra do choque, da batida e dos gritos de dor e horror à colisão. E lá pelas tantas os vários corpos, já sem vida, que ainda caíram por cima dele.

Certamente imagens que ele jamais vai esquecer. Assim é a vida: uns morrem, outros escapam, outros nascem de novo. E o que fica é a lembrança, a saudade, o afeto. E é nessas horas que a gente se questiona: Por que o destino parece tão injusto para alguns, que partem de forma tão violenta?

Na verdade, por mais que saibamos que vamos partir um dia, não estamos preparados para isso. E toda essa reflexão me veio a cada dia, a cada página, a cada palavra que li no DIÁRIO sobre a tragédia.

Confesso que não sou muito de ler as notícias policiais, mas o material foi tão bem produzido, escrito e editado que acompanhei a sequencia do trabalho e não me arrependi. Trata-se de um verdadeiro testemunho de momentos difíceis e superação a partir de um trabalho bem feito.

Como já disse, não sou muito de acompanhar o caderno com as notícias policiais, entretanto, já guardei em uma pasta as páginas sobre esse acidente e seu desdobramento. Um trabalho tão bem cuidado merece ser cuidado e novamente lido de tempos em tempos. Parabéns.

domingo, 22 de abril de 2012

Descoberto há 512 anos

"Nos deram espelhos
e vimos um mundo doente"
(Renato Russo)

O Brasil está descoberto há 512 anos...

... de transparência institucional
... de respeito aos povos originários
... de humanismo para com os filhos da Mãe África
... de governantes que não se rendam às potências internacionais
... de leis independentes em relação ao moralismo religioso
... de distribuição das riquezas para quem as produz

... de ... vergonha na cara.

O resumo dessa história, eu conto parafraseando Frei Betto:

Dom Pedro I abriu os portos, JK abriu as portas e FHC abriu as pernas... que Lula e Dilma não fecharam.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Via Sacra dos Cristos de agora 2


1ª Estação: Jesus é condenado a morrer na cruz.
Messias, uma criança de nove anos, é diagnosticado com câncer no estômago. Morador de Bom Destino, cidade localizada no interior do Pará, ele nem ao menos sabe o que é essa doença.

2ª Estação: Jesus toma sua cruz.
Não há leito. A mãe não tem nenhum parente em Belém. Ela passa a subir nos coletivos para pedir ajuda. O filho fica deitado numa maca no corredor do hospital. A mãe volta. O dinheiro arrecadado mal dá pra comprar os remédios.

3ª Estação: Jesus cai pela primeira vez.
Messias se contorce de dor. A mãe chora. Os enfermeiros, sem muito a fazer, olham e tentam ignorar. A criança se sente culpada pelas lágrimas da mãe. “Prometo que não vou mais comer besteira”, fala enquanto a dor o dilacera.

4ª Estação: Maria acompanha Jesus no calvário.
A mãe sai gritando pelo hospital que pelo amor de Deus parem a dor do filho dela. Depois de mais de duas horas uma dose de morfina é aplicada no garoto, ao mesmo que, na TV, o governo propagandeia mais investimentos na saúde.

5ª Estação: Cirineu ajuda Jesus a se levantar.
Pela manhã um grupo de voluntários alegra a manhã das crianças. Messias ri. Por alguns instantes ele não se sente num hospital do SUS.

6ª Estação: Verônica enxuga as lágrimas de Jesus.
A mãe de um paciente que está internado se compadece da criança e compra remédios para aliviar as dores de Messias. 

7ª Estação: Jesus cai pela segunda vez.
Messias consegue um leito. Entretanto, após nova avaliação os médicos detectam que a doença avançou pelo organismo dele.

8ª Estação: Jesus cuida das mulheres.
“Mãe, a senhora pode voltar pra casa pra dormir na sua cama, se quiser. Eu já tô melhor”, roga à mãe, que pede licença e vai chorar escondida no banheiro.

9ª Estação: Jesus cai pela terceira vez.
Há poucos remédios no hospital. Sem que a família de Messias saiba, os médicos selecionam os pacientes em melhor grau de doença para que sejam investidos os recursos escassos.  Messias não é um deles.

10ª Estação: Jesus é despido de suas vestes.
O garoto vai ao banheiro com ajuda da mãe. Alguém havia esquecido um espelho lá. Messias se vê. Fica chocado ao perceber-se tão magro e acabado. Ele se sente doente como nunca antes.

11ª Estação: Jesus é pregado na cruz.
Os médicos avisam à mãe de Messias que ele, desenganado, deve voltar para casa. Messias, apesar de quase não conseguir comer, fica muito feliz de poder voltar para casa, e não entende porque a mãe não demonstra o mesmo entusiasmo.

12ª Estação: Jesus morre na cruz.
A mãe consegue uma ambulância para levá-lo de volta. Ela reza para que o filho morra só quando ela tiver chegado em casa, para repartir a dor com os parentes e amigos. O carro balança muito. Messias treme um pouco. A ambulância vai, mas Messias vai antes.

13ª Estação: Jesus é descido da cruz.
Messias saiu de Bom Destino com dores no estômago e volta morto dentro de uma ambulância. O mundo desaba quando o corpo sai do carro. Toda a comunidade chora.

14ª Estação: Jesus é sepultado.
O caixão é pequeno. A dor imensa. Lágrimas descem e corpos desmaiam enquanto a terra cai sobre a caixa de madeira.

15ª Estação: Jesus ressuscita dos mortos.
A cidade, com apoio inclusive da prefeitura, faz protesto com repercussão nacional para que a saúde se difunda sobre aquelas terras empobrecidas. O nome do Messias fica gravado numa das ruas de Bom Destino. O governo divulga nota, ao final do noticiário, dizendo que o investimento em saúde no Estado é 10 vezes maior do que no governo anterior. Porém, as filas e o descaso desumanos nos hospitais públicos (e privados) também contam sua própria versão dos fatos.

quinta-feira, 29 de março de 2012

O Canalha - Caça 8

Ele foi passar três meses numa outra cidade a trabalho. Grana boa, trabalho desafiador, local muito bonito. Mas o que animou mesmo o nosso anti-herói foram os novos colegas. Três rapazes e uma moça - que aliás era muito bonita. Eles logo se enturmaram. No entanto, os três rapazes ficaram loucos pela garota. Ele a achou atraente, mas como os outros já eram afim antes da chegada dele, não achou legal ficar dando em cima. Então a tratava despretensiosamente.

Enquanto os colegas davam flores e pagavam as contas, ele a xingava e dizia que ela tinha orelhas horríveis.  Enquanto os colegas diziam palavras doces ele vivia dizendo que ela tinha um jeito de quem gemia muito loucamente na cama. Enquanto os colegas exibiam-se como pavões no cio, ele nem se comportava direito. Passados dois meses, nenhum dos três amigos do Canalha a conquistou.

Houve uma viagem a uma comunidade bem afastada do centro do município onde trabalhavam. Era uma espécie de aplicação do projeto experimental desenvolvido por eles. Todos os cinco se saíram bem, mas para a moça quem mais se destacou foi o Canalha. Por viver sempre na sacanagem, ela achava que ele não seria um bom profissional. Por isso surpreendeu-se positivamente.

A noite ela foi dar os parabéns a ele. O Canalha estava deitado na sua cama, só de short. Os outros três rapazes dormindo, cada um no seu quarto do mesmo hotel. Mas, tamanha era a certeza de que nada rolaria, que ele pediu pra ela sair logo dali porque estava morrendo de sono. E estava mesmo. Ela então o chamou de estranho. Se despediu e saiu. “Estranho?”. Essa palavra ficou rodando a cabeça dele. Foi como se o "Canalha" nele, adormecido há dois meses, voltasse a acender.

- Depois que você saiu me deu uma dor na costa. Não quer vir aqui e me fazer uma massagem? Perguntou ele via sms.
- Eu não. Por que eu faria isso? Respondeu a moça.
- Porque se não vier aqui, vai perder o pagamento.
- O que você vai me dar?
- Esse é o último sms que mando. Se não vier, tenho certeza que vai se arrepender. Enviou o Canalha, e depois desligou o celular.

Ela enviou sms, Ligou. Xingou sozinha. Vagou pelo quarto. Ele não era o mais bonito dos quatro. Não era o mais simpático. Por que ela iria? Não encontrou resposta. Não sabia se realmente queria ir, então abriu a porta, pra ver se não tinha ninguém no corredor, caso quisesse mesm[súbito, ele entrou no quarto a tomou pelos braços assim que ela abriu a porta].

“Ei! Por que você entrou?”, perguntou ela enquanto ele a abraçava e beijava-lhe o pescoço. “Porque você abriu a porta, ué”, respondeu. “Eu...”. Ela tentou dizer algo, mas foi interrompida pelo beijo mais aguardado de todos os tempos dos últimos minutos. Ela já estava com os olhos fechados, e quase o abraçava quando ele parou. “Se quiser continuar, sabe onde me encontrar”, disse ele e logo em seguida voltou para o seu quarto. Ela ficou ali. Estática. Sem saber o que fazer. Era muita humilhação para uma menina que podia estalar os dedos e ter até mesmo o maior dos seus chefes. “Esse cara é estranho”, pensava consigo.

“Pois eu não vou”, decidiu. Deitou-se na cama. Embrulhou-se. Tentou fechar os olhos, e cada vez que cerrava a visão lembrava daqueles olhos até pouco tempo a devorando. Lembrava das piadas que sempre a faziam rir. “Ele não vai mesmo voltar aqui?”, a essa altura já pensava. Não resistiu e foi até ele. Bateu na porta. Ele não atendeu. Estava destrancada. Entrou esperando a mesma pegada de antes. Mas não aconteceu. Ela entrou mais, o chamou, e nada. Pensando que já era palhaçada procurou embaixo da cama, no banheiro, no armário... e nada. “Ah filho da mãe!”, se indignou. E voltou para o quarto muito revoltada.

Deitou na cama e virou-se de lado para ver se conseguia dormir, mas sentiu o braço dele a envolver. Ela tentou vê-lo, mas o Canalha não disse nada e nem a deixou virar-se. A tocou. Ela estava "convidativa". “É você, né?”, perguntou com voz quase trêmula, toda ardente de desejo. Ele nada respondeu. Arredou a calcinha dela e a penetrou enquanto ela fechava bem os olhos e escancarava a boca involuntariamente. Misterioso. Ela, apenas crendo e desejando que fosse ele. Depois de fazê-la gozar naquela posição ele a vendou com um lenço levemente perfumado e continuaram. Depois de terminarem ainda ficaram um tempo trocando colo. Ele saiu sem nada falar e sem se deixar ver.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Sobre água e conflitos...

Até os cinco anos de idade minha família e eu morávamos numa casa de madeira, no bairro da Sacramenta em Belém. Vivíamos sobre o igapó, ou, como queiram, uma espécie área alagada com água insalubre. Nossas ruas eram pontes nem sempre seguras. Vez ou outra alguém caía delas na água suja - devo ter caído algumas vezes, inclusive. Quando chovia, as casas que lá se encontravam ficavam mergulhadas no igapó. O nosso drama familiar só foi resolvido porque o irmão do papai nos cedeu o terreno em área seca no qual minha família mora até hoje.
Partilho isso porque há 20 anos a ONU celebra no dia de hoje (22/03) o Dia Mundial da Água. E quando a gente fala de água, não falamos só de água pra beber.Enquanto minha família, empobrecida, não teve outra escolha na época a não ser morar numa região onde havia águas indesejáveis. Até hoje muitas pessoas na Amazônia acabam tendo que morar sobre pontes (palafitas) ou a beira de canais onde estão as "águas que não servem". Ou seja, as pessoas que para a sociedade capitalista "não prestam" moram perto da "água que não presta", enquanto que, as "pessoas que prestam" vivem perto da "água que presta", como em frente a praias badaladas.
Eu moro na Amazônia, que concentra cerca de 8% de toda água doce do mundo. Daqui a 20 anos, nós mesmos aqui na Amazônia podemos não ter água pra beber, e isso não vai ser porque desperdiçamos água, e sim porque as águas que temos estarão todas contaminadas pela ação indiscriminada do agronegócio, das mineradoras, das indústrias, e até mesmo pelos esgotos de lares que não passam por tratamento.
Daqui a 20 anos, nós teremos praticamente a mesma quantidade de águas que temos hoje, mas elas estarão poluídas devido à irresponsabilidade desse sistema que vivemos e a falta de um desenvolvimento solidário sustentável e territorial.
Água não é mercadoria, nem propriedade dos ricos e dos seus empreendimentos. Água que não presta não deve ser bebida de quem não tem dinheiro para comprar água mineral nem moradia para quem não tem onde morar. Privar as pessoas do direito de usufruir da água, que é dada para nós gratuitamente pela grande mãe Gaya, é cruel. No futuro, muitos não morrerão de sede. Muitos morrerão pela sede de poucos.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 3 DE 3


Nos posts anteriores, Armando começou a aprender o que significa ser adulto. A matéria que escreveu foi publicada e por uma linha dela um policial que agrediu seus colegas militantes foi encaminhado à corregedoria. Enquanto isso, seus amigos militantes criticaram a matéria desconhecendo que a autoria é de um amigo outrora crítico a matérias do tipo. Uma carreira nas redações com possibilidade de não dar a ele dinheiro suficiente para compensar uma possível incoerência com o discurso tão defendido na universidade ou arriscar ser pai de uma forma inesperada e irresponsável e ainda por cima ter de depender dos pais para sustentar o filho?
Armando põe o celular sobre uma mesa. No display a mensagem criticando a matéria dele ainda aberta. Ele olha a mensagem. A mensagem no celular, o celular na mão. Armando olha sua própria mão e nela seus dedos. Nas pontas dos dedos da mão esquerda que segurava o celular há cicatrizes do que no dia anterior eram calos. Os calos foram feitos depois de tocar um violão de cordas de aço durante três horas seguidas. Antes disso, há três anos, bastavam alguns minutos para os dedos ficarem em merda. Os dedos estão diante dele, e depois dos dedos estão quadros. Retratos de antigamente. O foco sai da mão para o retrato dele festejando o vestibular. A tensão do vestibular é como um calo anterior na ponta dos dedos de sua alma. Ele aprendeu a tocar violão de calo em calo. Olhando novamente o celular, que por acaso foi colocado ao lado do jornal no qual está sua matéria, ele percebe que está na hora de superar mais um calo.

“A matéria que saiu no jornal hoje é minha”, escreve Armando no sms encaminhado a todos os colegas de militância, sejam os mais experientes, sejam os novatos. Não demoram a chegar telefonemas. Ele em geral não gosta de responder à mesma pergunta mais de uma vez, mas dessa vez faz um sacrifício. A primeira coisa que passou pela cabeça dele foi dizer ter aceitado a proposta de trabalhar no jornal porque teria um filho. “Coitada dessa criança. Nem nasceu ainda para assumir uma responsabilidade de outra pessoa”, pensou. Então resolveu contar aos colegas sobre a paternidade somente semanas depois de conversar com eles sobre o novo emprego e explicar a necessidade de arrumar trabalho, por isso aceitou. Foi bem mais difícil para ele próprio aceitar isso do que os amigos. Fizeram muitas piadinhas, é verdade, mas aceitaram numa boa.

***
Obviamente o policial levado à corregedoria não sofreu maiores punições do que alguns dias de reclusão. No entanto, encontrar com aquele policial na rua – que soube depois que foi ele quem escreveu a maldita matéria – e perceber o ódio do PM, dava a ele uma pontada de orgulho.

***
Armando trabalhou durante alguns anos naquele jornal, e conseguiu perceber que mesmo em um jornal de linha conservadora era possível fazer boas matérias, sobretudo quando quem estava no poder era um inimigo político do jornal. Depois, conseguiu o que sempre quis: foi contratado para escrever para uma revista de esquerda. Mas não qualquer revista de esquerda, e sim a mais conceituada do Brasil. Qual foi a decepção dele então ao perceber que ali o ambiente de trabalho era cercado por disputas internas e conflitos de vaidade e isso fazia ele se sentir bem pior do que trabalhando no jornal de direita. Meses depois ele aceitou o convite para ganhar mais num jornal de grande circução, agora como repórter especial.
PRÓLOGO
Aos 37 anos ele tem uma filha que não sabe se presta vestibular para jornalismo ou para matemática.
“Pai, eu não sei o que eu escolho. Eu estou desesperada já”, desabafou Adriana. Com um sorriso terno no canto da boca ele a encara e se vê. Ele fala para ela dizendo para si mesmo: “você vai descobrir como na verdade as coisas escolhem a gente, filha”. “Será que vai demorar muito pra isso acontecer, pai?”, pergunta ela, enquanto esfrega o rosto no seu ombro. “A gente só vive a vida vivendo , filha. Seja qual for a escolha que fizer, dê o máximo de si. Independente de qualquer coisa, os que te amam vão respeitar e amar o que você escolher. Porque a amam pelo que você é, e suas escolhas fazem parte de você”, disse ele, diante de si. A filha achou todo aquele discurso muito chato, na verdade, mas gostou muito do abraço.
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Por sugestão da Lorena Prazeres do blog Infinito Particular, partilho essa canção, que tem realmente tudo a ver com o post.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 2 DE 3

Como vimos no último Post, Armando foi um universitário militante e combatente. Sempre era aplaudido pelas críticas densas e radicais que fazia contra os grandes veículos de comunicação nos painéis e seminários nos quais era orador. No entanto, cinco meses depois de formado e sem emprego, e, além disso, com a notícia da paternidade não planejada, foi à uma redação de um jornal conservador tentar arrumar o primeiro emprego. Entretanto, a primeira tarefa dele seria escrever justamente sobre um protesto feito pelos ex-colegas de militância reprimido violentamente pelos policiais. Agora, diante do PC, o ideal e o real travam uma dura batalha em sua mente. Ele sua frio. O colega que o acompanhou na apuração o vê há 10 minutos diante da tela com o word aberto e nenhum caractere digitado. “Depois que você começar, o resto fica mais fácil”, aconselhou.

Na verdade, o problema não estava em começar o texto. O problema estava em começar a fazer algo que sempre criticou. Ele sabe. A única forma de conseguir o emprego é escrever meias verdades, pois a linha editorial do jornal claramente repudia atos como o que foi realizado pelo movimento estudantil do qual participou. Após ter uma ideia desesperada mas de repente viável, Armando levanta-se da cadeira e vai até o editor que vai avaliar a matéria escrita por ele. Pergunta se a matéria sairá com sua assinatura. “Não. Em geral colocamos assinatura depois do repórter devidamente contratado”, respondeu. Bingo! Ele escreve a matéria. Fala do ato, fala do congestionamento provocado, fala superficialmente dos argumentos dos estudantes em realizar o protesto e relata o discurso policial hipócrita que afirma ter agido pacificamente. Para não dizer que não falou das flores, ele cita a agressão do policial em uma linha. “Eles devem cortar isso, mas vou colocar mesmo assim”, pensou.

Na verdade, foi fácil escrever o texto. Ele só teve de fazer tudo aquilo que antes dizia que não era para se fazer quando estava com a fala nos auditórios ou empunhando mega-fones. No outro dia a matéria sai publicada. Ele vê os previsíveis comentários dos colegas a respeito da matéria que ele fez - o qual nem teve coragem de ler para não ter mais raiva. Ele ganha o emprego. Mas antes de encarar os colegas de militância para explicar o que ele está fazendo e porquê está fazendo, ele tem de descobrir por si próprio se isso tudo vale realmente à pena. Vai até a casa de um ex-professor repórter num jornal concorrente. Este era um dos poucos que respeitava o movimento estudantil. Quer saber como o professor conseguiu ser um dos mais respeitados jornalistas dos grandes jornais ‘comerciais’ da cidade, dados os ideais que ele partilhava nas salas de aula.

Ao chegar a casa do professor, o impacto. Um dos jornalistas mais respeitados da cidade, com um dos melhores salários, tem uma casa bem mais simples que a sua. É um apartamento pequeno, sem nada luxuoso. Móveis surrados, alguns quadros bonitos mas com a televisão pequena, apesar de ser LCD. O professor fala com ele, mas daqui a alguns minutos nenhuma das palavras do mestre ficará registrada em sua mente. O que marcou mesmo Armando foi ver um jornalista no auge da carreira possuir menos coisas do que o pai, que nem curso superior tem. O professor falava dos primeiros meses difíceis dele na redação e filtros ideológicos quando viu o ex-aluno sair correndo pela porta.

Armando desceu desde o oitavo andar do prédio onde o ex-professor morava pelas escadas. Ele queria muito chorar, mas o choro estava engatado todo na garganta. Ele chegou em casa e não falou com ninguém. Foi direto para debaixo do chuveiro. Ele se sentia sujo. “Como eu fui me vender por tão pouco?”, se condenava. Eis que a mãe bate na porta do quarto. “Armandinho, telefone pra ti. É do jornal”, avisou a coroa. “Vou atender aqui do quarto”, respondeu Armando. Era a chance. “Vou mandar esse jornal pra puta que pariu”, desejou. Ao atender, não era o editor e sim o colega jornalista que o acompanhou.

“O policial denunciado por você foi afastado da polícia pela corregedoria”, disse o colega preocupado (pois PMs costumam 'marcar' jornalistas que 'escrevem demais'). Mas Armando sorriu de felicidade, deixando o colega sem entender. Afinal, Como?! A linha que escrita do policial que agrediu o aluno covardemente saiu?! Ele pega o jornal depois de desligar o telefone. Procura pela linha. Estava lá! A linha saiu! De repente, o outro lado da profissão irradia diante dele. Em tantos atos e palestras para militante ouvir, nunca conseguiu fazer com que uma autoridade canalha fosse ao menos punida. Com uma linha de jornal ele conseguiu fazer algo concreto que não conseguiu em três anos de movimento. Em meio a alegria, chega um sms. “O jornal burguês mais uma vez criminalizou nosso ato”, enviou um colega militante. E agora? Ser ou não ser jornalista de um periódico burguês que, porém, fala mais alto que um palanque? Eis a questão...

Continua...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 1 DE 3


Durante a graduação ele não foi um aluno brilhante, mas nem de longe foi um aluno qualquer. Armando liderou por três anos o Centro Acadêmico de Comunicação Social, apelidado carinhosamente de CACOS pelos integrantes. Desde jogar o bebedouro quebrado na sala do reitor até ser preso por cuspir na cara de um PM durante um protesto, várias são as lembranças que aquecem o coração dele. A graduação veio com um canudo entupido de um passado honroso, aos olhos dele, mas de um futuro incerto. No momento que recebia os aplausos pelo nome chamado, no caminho até o palco ele ia refletindo sobre o que aquilo significava. Depois, lá de cima, olhando aqueles rostos maquiados, aqueles colegas perfumados e familiares orgulhosos, a pergunta que ele se fez foi: e agora?

Três meses depois, ele tinha o apoio da família, mas era estranho o aperto no coração que sentia ao saber notícias de seus amigos arrumando bons empregos em assessorias de comunicação, ou nas detestáveis redações de grandes jornais, que ele tanto criticou em vários momentos. Quatro meses depois, a bomba: “o filho é teu”, disse Alice, com uma barriga mínima para uma gravidez de cinco meses. Ele não quis acreditar. “Era uma orgia, porra! Você nem deve lembrar quantos te comeram naquele dia”, se desesperou. Ela argumentou que ele estava porre, mas deve lembrar que ela pediu muito pra que ele não gozasse dentro. Levando as mãos à cabeça, lembrou de como aquela irresponsabilidade foi deliciosa no momento. “Eu só descobri mês passado, porque minha barriga quase não cresceu e minha menstruação é irregular”, explicou ela, dizendo que nem sentir enjôos, sentia.

Cinco meses depois de formado, a família já o pressionava para arrumar emprego. “Um eu sustento, mas sustentar mais uma criança eu não posso”, avisou o pai de Armando. A angústia já o dominava quando soube que um jornal impresso estava contratando. Ele revia as fotos de um protesto a favor da democratização da comunicação que fez dois anos antes em frente à redação em que ele poderia estar no dia seguinte. A noite foi longa, mas depois de ter rolado na cama por muitas horas ele finalmente cochilou e sonhou com uma linda criança sorrindo pra ele. Ele a pegava no colo, e em seguida o bebê fofo mordia os ombros dele com a gengiva. Ele acordou às seis, com aquela imagem do bebê na cabeça. Antes das oito da manhã ele estava na redação. Ele foi indicado por um professor que sempre o achou promissor. O teste consistia em acompanhar uma equipe de reportagem e fazer uma ou duas matérias ao voltar para a redação.

Para a surpresa dele, a primeira pauta era cobrir um protesto de estudantes. Quando chegaram ao trecho da avenida bloqueada pelos manifestantes, ele logo identificou alguns "companheiros". Para justificar-se aos colegas jornalistas, disse que ficaria olhando de longe “pra fazer uma apuração por outro ângulo”. A equipe desceu, fez fotos, entrevistou estudantes, polícia e transeuntes. E Armando lá, escondido e morrendo de vergonha. Eis que um policial começa a provocar os estudantes. Chama-os de veadinhos. Um estudante, como de praxe, reage atirando pedras. Basta. A confusão se generaliza. Balas de borracha. Pedradas. Cassetetes descendo. Sangue escorre. Eis que, bem diante de Armando, um policial passa a rasteira num estudante e covardemente o acerta uma coronhada na cabeça. O estudante grita. Armando mira o rosto. É semelhante. Lembra muito. Não. Não lembra, é: o sucessor dele no CACOS.

A confusão se dissipa. A polícia consegue desbloquear a via. Motoristas de carro e ônibus e muitos trabalhadores nos coletivos xingam os estudantes detidos quando passam por eles. Armando vê tudo isso também. A equipe volta à redação de um jornal de linha editorial extremamente conservadora. Agora ele tem que escrever, sabendo que se escrever como pensa ser a verdade o emprego não será seu. Ele lembra-se da militância. Do discurso, do filho, do passado. Pensa no futuro... pensa no agora... e agora?
Continua...