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segunda-feira, 31 de março de 2014

Dom Alberto Ramos mandou prender seus padres


“A Santíssima Trindade decidiu visitar alguns lugares da querida Terra. Diz o Pai:
- Vou ao jardim do Éden, na Mesopotâmia, onda passei momentos muito felizes com Adão e Eva.
Diz o Filho:
- Vou à Galileia, onde passei momentos muito felizes quando era jovem.
Diz o Espírito Santo:
- Vou ao Vaticano, pois nunca lá estive.”
(Anedota de autoria desconhecida)

Nestes dias de lembrarmos 50 anos do golpe militar de 1964 um fato quase silenciado ao longo da história precisa ser lembrado.  Dom Alberto Ramos foi maior autoridade da igreja católica no Pará enquanto arcebispo de Belém no período de 1957 a 1990. Esta pessoa, conhecida por ser erudito, por ter participado da Academia Paraense de Letras, que empresta o nome a diversos locais públicos, mandou prender seus padres. Vou repetir: Dom Alberto Ramos mandou prender seus padres. No primeiro dia do novo regime ele pessoalmente anunciou na TV uma lista entregue por ele aos amigos militares contendo nomes de presbíteros ligados à chamada “esquerda católica”, considerados por ele “comunistas” ou com ligações "perigosas" com tal movimento. Um homem refém das falácias elitistas, vítima e culpado pela propagação de mensagens terroristas e rasas contra quem defendia maior justiça social na Amazônia e no mundo. Não se sabe até hoje qual a lista completa divulgada pelo arcebispo, mas nela certamente estavam os padres Diomar, Neno e Aloísio, então assessores da Ação Católica e presos graças às delações de seu superior.

Incentivados pelas encíclicas “Mater et Magister” e Pacem in Terris”, nas quais o papa conciliar João XXIII recomendava a relação com grupos ligados à luta por justiça (inclusive comunistas), padres, religiosos/as e leigos/as de todo Brasil agiam nas diversas organizações da Ação Católica da qual participaram importantes lideranças brasileiras, como o irmão do Henfil. A ideia era enxergar um Jesus Cristo transgressor, consciente e consequente politicamente, e crítico das injustiças como mensagem evangélica, e não um "Jesuzinho paz e amor", bonzinho, manso e despolitizado. Tal visão cristã tem como consequência o comprometimento radical com a vida, posição firme contra tudo que a denigre e opção preferencial pelos/as excluídos/as. No início da década de 60 os padres Neno, Diomar e Aloísio foram delatados pelo arcebispo por ter ligação com jovens atuantes. Um dos membros dessa igreja libertadora, Heraldo Maués, hoje considerado um dos maiores antropólogos da Amazônia. Ele também vivenciou as chagas da prisão e da tortura.

O episódio vergonhoso da igreja do Pará foi testemunhado pelo então noviço Frei Betto, que estava em Belém para articular a Juventude Estudantil Católica (JEC), como relatou na biografia de Dom Helder Câmara (Helder, o Dom) e na própria autobiografia (Alfabetto). Ele ficou perplexo ao assistir Dom Alberto Ramos anunciar a delação na TV e em seguida foi avisado pelo então bispo auxiliar, Dom Milton Pereira, para fugir da casa do arcebispado onde estava hospedado e depois partir o mais rápido possível de Belém. Foi para Pernambuco, para a posse de Dom Helder Câmara e em particular comunicou a delação. Dom Helder, conhecido até hoje como "bispo vermelho", junto com Dom Pedro Casaldaliga e Dom Fragoso foram líderes denunciantes da Ditadura Militar, apoiadores de sindicatos e líderes perseguidos, mas não foram regra e sim exceção.

Em âmbito nacional a CNBB criticava a prisão de pessoas ligadas a organizações católicas, mas chegou a publicar um documento intitulado "Declaração Sobre a Situação Atual", onde algumas linhas falavam sobre a Ditadura recém-instaurada: "Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e, evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. (...) De uma à outra extremidade da Pátria transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação". Sobre tal discurso, uma palavra: nojo.

Voltando a falar sobre a repressão em Belém, a  posição fascista de Dom Alberto Ramos só ganhou maior repercussão em terras paraenses nas reportagens de Oswaldo Coimbra para o Caderno Amazônia da extinta Província do Pará, o qual não passou da primeira edição, porque pressões de poderosos (incluindo a igreja) forçaram a segunda edição ser arquivada. Oswaldo conta com mais detalhes esse episódio e os desdobramentos disso no livro “A denúncia de Frei Betto contra o arcebispo do Pará em 1964: Dom Alberto Ramos Mandou Prender Seus Padres”, da editora Paka-Tatu, na qual as delações também feitas contra jovens lideranças são contadas. Um material denso e muito bem apurado o qual cada paraense e cada católico deveria ter acesso para saber que a Ditadura Militar não deixou marcas apenas na região do Araguaia. Houve em menor proporção em relação a outras regiões, é verdade, mas aconteceu repressão em Belém, e a igreja católica foi conivente e colaboradora na pessoa do seu maior lider.

Eu não sinto apenas vergonha disso enquanto católico. Sinto revolta. A Igreja Católica Apostólica Romana, como diria Leonardo Boff, é dotada de Carisma e Poder. Consegue ser a igreja de Padre Josimo, de Dom Oscar Romer, Frei Titto e tantos outros religiosos comprometidos com o povo ao ponto de pagarem com a própria vida, mas também é a igreja de um Vaticano onde a gente aplaude de pé quando um Papa comete a "ousadia" de ser humilde (até hoje me impressiono como as pessoas podem se surpreender com isso). Rogo para que o Vaticano um dia seja demolido e as riquezas e terras desta instituição em todo mundo sejam doadas a obras em favor do povo e em honra à alma de tantas e tantos lutadores por justiça social e política no mundo todo. Principalmente em honra a Jesus Cristo, que um dia declarou, segundo a Bíblia organizada pela própria riquíssima igreja católica e tantas outras endinheiradas denominações cristãs usam todo dia: "Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus" (Mt, 19:24). Não existe riqueza sem exploração. Jesus sabia disso. Dom Alberto Ramos, frequentador constante das festas do "Grand Monde", aparentemente não.


sexta-feira, 28 de março de 2014

Quando fui repórter de Polícia - parte 1


JORNALISMO-URUBU

Desde criança sou fascinado por o urubu. Impressionava-me o tamanho daquelas asas pretas com pontas brancas. Não sabia porquê mas ficava um tempão olhando a forma como voava diferente dos outros pássaros, e tinha nojo daquela cara feia, sobretudo quando ficava manchada pelo sangue da carniça devorada. Também era ainda um garotinho quando no início da década de 90 foi ao ar o jornal “Aqui Agora” do SBT. Gil Gomes e companhia popularizaram e consolidaram na TV brasileira uma forma de fazer jornalismo - importada dos istêitis - baseada na superexploração da violência e na criminalização da pobreza para gente na condição de pobre ver. E deu certo. Jornalismo em TV aberta hoje é resumidamente isso. Mas eu desde cedo não assistia. Não ouvia programas de rádio nessa linha. Não lia páginas de jornais ensanguentadas. Não curtia jornalismo-urubu.

Continuo não assistindo e nem ouvindo, mas por 22 meses eu li. Como não ler quando a primeira proposta para trabalhar numa redação de impresso, razão pela qual sonhei me formar em jornalismo, foi justamente pra essa porra? Caí em tentação. Eu pequei por não hesitar em responder sim? Não sei. Agora só consigo lembrar como uma fração de segundo depois de teclar enter no Gtalk dizendo sim pra trabalhar no Caderno de Polícia do Diário do Pará, imediatamente olhei assustado meu nariz crescer e juntar com a boca virando um bico cumprido e curvado na pontinha. Meus cabelos caíram e minha pele do pescoço pra cima enrugou. As pontas das minhas mãos ficaram brancas, depois meus pelos começaram a engrossar a ponto de tornarem-se penas pretas de luto. Minhas pernas afinaram ainda mais, entortaram pro outro lado; meus braços viraram asas e sem muito esforço comecei a voar. Não demorou muito eu comecei a avistar e desejar carniças.

Lá do outro lado da existência caí em tentação pela segunda vez: admirei a beleza, a leveza e a suavidade do voo dozurubus. Urubu não voa, simplesmente, ele divide a mesma maconha com o vento. O ato de voar dele é a tradução avoante de pairar. Lá de cima me impressionei como a incrível possibilidade de cheirar e enchergar com x o alimento mesmo de muito longe. No começo me senti estranho lá no alto. Todos pareciam pensar igual: carniçacarniçacarniça... mas não. Não era bem assim. Eu precisei subir sem redundância pra cima dos outros colegas para encontrar com alguns urubus que veem o choro por trás da morte, os porquês mais profundos dentro dos oquês, o antes e o depois ao olhar o fim. E se não houvesse urubus para testemunhar os descomeços? Caí na terceira tentação: urubus são importantes. Sem nós seria pior. E se eu simplesmente quisesse voar ao lado dos que anseiam circular ao vento no sentido contrário da maioria? Aí vi graça em ser urubu, olha. Descobri enquanto repórter de um caderno que sempre desprezei uma coisa legal: eu posso ser eu mesmo, fincado nos mesmos princípios, sendo o que eu quiser ser. Era legal voar. Meu melhor sonho de criança.

sexta-feira, 14 de março de 2014

DIÁRIO DE UM SERTANEJO - 82º DIA

Mesmo que eu lembrasse o nome daquela estrada carroçal, ou a exata razão de estar ali, isso não importaria agora. Nenhum detalhe técnico é mais importante em relação a qualquer ferida cicatrizada ou não do cachorro vira-lata sobre o qual escrevo agora. Dele sim gostaria de saber o nome. Esta história é sobre um cão cego, provavelmente. Louco, certamente. Ridicularizado por meus amigos e eu, ambos coadjuvantes neste relato feito sobre um cachorrinho que me ensinou coisas de amar e sobre como somos capazes de ser naturalmente escrotos.

Estávamos indo. Não me pergunte pra onde, porque mesmo que lembrasse eu não diria agora. Paramos para pegar informações, diriam os fatos, mas quem acredita nessas coisas de destino diria que só paramos ali para conhecê-lo. Desde o começo ele pareceu engraçado. Marrom, tipicamente vira-lata, carente de banho e de atenção, aparentando já estar algum tempo vivendo a vida adulta e o rabinho cotó. Quando nos viu pela primeira vez o cachorro nos farejava e se lançava a nossas pernas como se não enxergasse. Parecia tentar compensar a falta de visão tentando sentir o nosso cheiro. Já no primeiro contato ele me pareceu engraçado por parecer cego. Eu, que me julgo defensor da inclusão, ri da limitação dele e pedi para os outros rirem.

Precisávamos ir. Dessa parte eu lembro e posso contar: Não sabíamos pra onde. Mas fomos. Largamos o cachorro pra trás como quem joga fora uma meleca do nariz ou como quem vê os mendigos desaparecerem da borda de nossas existências quando o sinal abre. Fomos e não encontramos nada, então voltamos. No retorno, já havíamos passado quase cinco quilômetros do local onde encontramos pela primeira vez o tal cachorrinho. Demos uma parada. Ficamos cerca de dez minutos ali, ou menos, quando avistamos um pequeno borrão lá longe. “É aquele cachorro!”, alguns diziam. Eu não acreditava.

Ora, para ser ele, teria de ter percorrido pelo menos nove quilômetros. Continuamos nossos afazeres enquanto o borrão crescia. Ficava maior, mas não exatamente grande. Deixava de ser um pontinho para se tornar uma mancha marrom. “Era um cachorro”, reconhecemos. “É aquele cachorro!”,exclamei. E rimos de novo quando ele chegou. Balançava o rabinho. Rimos mais ainda ao perceber o mesmo jeito inconsequente de se atirar a nós. O rabinho ainda balançava. Caímos na gargalhada mesmo quando notamos as patas traseiras dele trêmulas após tanto esforço, pois ele não veio simplesmente correndo, correu o mais rápido que pôde. Ele não ligava para a fadiga denunciada pelas patas trêmulas. O rabinho balançava ainda. Parecia querer agradar a gente. O rabinho sempre balançava.

Depois simplesmente entramos no carro e fomos embora. Assim. Esqueci-me dele cinco segundos depois de conversarmos sobre outra coisa menos “hilária”. De noite, porém, antes de dormir, fui contar a história do cachorrinho e chorei. Mas chorei de soluçar. Ia contar a história pelo viés cômico, mas no meio do meu próprio discurso sobre aqueles gestos me dei conta do que realmente vi. Ora, se não tivéssemos parado o carro e permanecido naquele local durante aquele tempo o bichinho jamais nos teria alcançado, e se ele continuava correndo sem saber que pararíamos é porque para ele não importava alcançar, importava mesmo era correr atrás. De quê? De repente eu seja (ir)racional demais pra entender.


Ainda lembro do rabinho cotó dele balançando. Das patinhas trêmulas. Minha dor é saber como a gente nem sempre está ao lado dos bons. Minha alegria é saber que sim, o amor existe, e ele não liga pra essas coisas do impossível, nem pra risada dos ridículos.