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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 3 DE 3


Nos posts anteriores, Armando começou a aprender o que significa ser adulto. A matéria que escreveu foi publicada e por uma linha dela um policial que agrediu seus colegas militantes foi encaminhado à corregedoria. Enquanto isso, seus amigos militantes criticaram a matéria desconhecendo que a autoria é de um amigo outrora crítico a matérias do tipo. Uma carreira nas redações com possibilidade de não dar a ele dinheiro suficiente para compensar uma possível incoerência com o discurso tão defendido na universidade ou arriscar ser pai de uma forma inesperada e irresponsável e ainda por cima ter de depender dos pais para sustentar o filho?
Armando põe o celular sobre uma mesa. No display a mensagem criticando a matéria dele ainda aberta. Ele olha a mensagem. A mensagem no celular, o celular na mão. Armando olha sua própria mão e nela seus dedos. Nas pontas dos dedos da mão esquerda que segurava o celular há cicatrizes do que no dia anterior eram calos. Os calos foram feitos depois de tocar um violão de cordas de aço durante três horas seguidas. Antes disso, há três anos, bastavam alguns minutos para os dedos ficarem em merda. Os dedos estão diante dele, e depois dos dedos estão quadros. Retratos de antigamente. O foco sai da mão para o retrato dele festejando o vestibular. A tensão do vestibular é como um calo anterior na ponta dos dedos de sua alma. Ele aprendeu a tocar violão de calo em calo. Olhando novamente o celular, que por acaso foi colocado ao lado do jornal no qual está sua matéria, ele percebe que está na hora de superar mais um calo.

“A matéria que saiu no jornal hoje é minha”, escreve Armando no sms encaminhado a todos os colegas de militância, sejam os mais experientes, sejam os novatos. Não demoram a chegar telefonemas. Ele em geral não gosta de responder à mesma pergunta mais de uma vez, mas dessa vez faz um sacrifício. A primeira coisa que passou pela cabeça dele foi dizer ter aceitado a proposta de trabalhar no jornal porque teria um filho. “Coitada dessa criança. Nem nasceu ainda para assumir uma responsabilidade de outra pessoa”, pensou. Então resolveu contar aos colegas sobre a paternidade somente semanas depois de conversar com eles sobre o novo emprego e explicar a necessidade de arrumar trabalho, por isso aceitou. Foi bem mais difícil para ele próprio aceitar isso do que os amigos. Fizeram muitas piadinhas, é verdade, mas aceitaram numa boa.

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Obviamente o policial levado à corregedoria não sofreu maiores punições do que alguns dias de reclusão. No entanto, encontrar com aquele policial na rua – que soube depois que foi ele quem escreveu a maldita matéria – e perceber o ódio do PM, dava a ele uma pontada de orgulho.

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Armando trabalhou durante alguns anos naquele jornal, e conseguiu perceber que mesmo em um jornal de linha conservadora era possível fazer boas matérias, sobretudo quando quem estava no poder era um inimigo político do jornal. Depois, conseguiu o que sempre quis: foi contratado para escrever para uma revista de esquerda. Mas não qualquer revista de esquerda, e sim a mais conceituada do Brasil. Qual foi a decepção dele então ao perceber que ali o ambiente de trabalho era cercado por disputas internas e conflitos de vaidade e isso fazia ele se sentir bem pior do que trabalhando no jornal de direita. Meses depois ele aceitou o convite para ganhar mais num jornal de grande circução, agora como repórter especial.
PRÓLOGO
Aos 37 anos ele tem uma filha que não sabe se presta vestibular para jornalismo ou para matemática.
“Pai, eu não sei o que eu escolho. Eu estou desesperada já”, desabafou Adriana. Com um sorriso terno no canto da boca ele a encara e se vê. Ele fala para ela dizendo para si mesmo: “você vai descobrir como na verdade as coisas escolhem a gente, filha”. “Será que vai demorar muito pra isso acontecer, pai?”, pergunta ela, enquanto esfrega o rosto no seu ombro. “A gente só vive a vida vivendo , filha. Seja qual for a escolha que fizer, dê o máximo de si. Independente de qualquer coisa, os que te amam vão respeitar e amar o que você escolher. Porque a amam pelo que você é, e suas escolhas fazem parte de você”, disse ele, diante de si. A filha achou todo aquele discurso muito chato, na verdade, mas gostou muito do abraço.
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Por sugestão da Lorena Prazeres do blog Infinito Particular, partilho essa canção, que tem realmente tudo a ver com o post.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 2 DE 3

Como vimos no último Post, Armando foi um universitário militante e combatente. Sempre era aplaudido pelas críticas densas e radicais que fazia contra os grandes veículos de comunicação nos painéis e seminários nos quais era orador. No entanto, cinco meses depois de formado e sem emprego, e, além disso, com a notícia da paternidade não planejada, foi à uma redação de um jornal conservador tentar arrumar o primeiro emprego. Entretanto, a primeira tarefa dele seria escrever justamente sobre um protesto feito pelos ex-colegas de militância reprimido violentamente pelos policiais. Agora, diante do PC, o ideal e o real travam uma dura batalha em sua mente. Ele sua frio. O colega que o acompanhou na apuração o vê há 10 minutos diante da tela com o word aberto e nenhum caractere digitado. “Depois que você começar, o resto fica mais fácil”, aconselhou.

Na verdade, o problema não estava em começar o texto. O problema estava em começar a fazer algo que sempre criticou. Ele sabe. A única forma de conseguir o emprego é escrever meias verdades, pois a linha editorial do jornal claramente repudia atos como o que foi realizado pelo movimento estudantil do qual participou. Após ter uma ideia desesperada mas de repente viável, Armando levanta-se da cadeira e vai até o editor que vai avaliar a matéria escrita por ele. Pergunta se a matéria sairá com sua assinatura. “Não. Em geral colocamos assinatura depois do repórter devidamente contratado”, respondeu. Bingo! Ele escreve a matéria. Fala do ato, fala do congestionamento provocado, fala superficialmente dos argumentos dos estudantes em realizar o protesto e relata o discurso policial hipócrita que afirma ter agido pacificamente. Para não dizer que não falou das flores, ele cita a agressão do policial em uma linha. “Eles devem cortar isso, mas vou colocar mesmo assim”, pensou.

Na verdade, foi fácil escrever o texto. Ele só teve de fazer tudo aquilo que antes dizia que não era para se fazer quando estava com a fala nos auditórios ou empunhando mega-fones. No outro dia a matéria sai publicada. Ele vê os previsíveis comentários dos colegas a respeito da matéria que ele fez - o qual nem teve coragem de ler para não ter mais raiva. Ele ganha o emprego. Mas antes de encarar os colegas de militância para explicar o que ele está fazendo e porquê está fazendo, ele tem de descobrir por si próprio se isso tudo vale realmente à pena. Vai até a casa de um ex-professor repórter num jornal concorrente. Este era um dos poucos que respeitava o movimento estudantil. Quer saber como o professor conseguiu ser um dos mais respeitados jornalistas dos grandes jornais ‘comerciais’ da cidade, dados os ideais que ele partilhava nas salas de aula.

Ao chegar a casa do professor, o impacto. Um dos jornalistas mais respeitados da cidade, com um dos melhores salários, tem uma casa bem mais simples que a sua. É um apartamento pequeno, sem nada luxuoso. Móveis surrados, alguns quadros bonitos mas com a televisão pequena, apesar de ser LCD. O professor fala com ele, mas daqui a alguns minutos nenhuma das palavras do mestre ficará registrada em sua mente. O que marcou mesmo Armando foi ver um jornalista no auge da carreira possuir menos coisas do que o pai, que nem curso superior tem. O professor falava dos primeiros meses difíceis dele na redação e filtros ideológicos quando viu o ex-aluno sair correndo pela porta.

Armando desceu desde o oitavo andar do prédio onde o ex-professor morava pelas escadas. Ele queria muito chorar, mas o choro estava engatado todo na garganta. Ele chegou em casa e não falou com ninguém. Foi direto para debaixo do chuveiro. Ele se sentia sujo. “Como eu fui me vender por tão pouco?”, se condenava. Eis que a mãe bate na porta do quarto. “Armandinho, telefone pra ti. É do jornal”, avisou a coroa. “Vou atender aqui do quarto”, respondeu Armando. Era a chance. “Vou mandar esse jornal pra puta que pariu”, desejou. Ao atender, não era o editor e sim o colega jornalista que o acompanhou.

“O policial denunciado por você foi afastado da polícia pela corregedoria”, disse o colega preocupado (pois PMs costumam 'marcar' jornalistas que 'escrevem demais'). Mas Armando sorriu de felicidade, deixando o colega sem entender. Afinal, Como?! A linha que escrita do policial que agrediu o aluno covardemente saiu?! Ele pega o jornal depois de desligar o telefone. Procura pela linha. Estava lá! A linha saiu! De repente, o outro lado da profissão irradia diante dele. Em tantos atos e palestras para militante ouvir, nunca conseguiu fazer com que uma autoridade canalha fosse ao menos punida. Com uma linha de jornal ele conseguiu fazer algo concreto que não conseguiu em três anos de movimento. Em meio a alegria, chega um sms. “O jornal burguês mais uma vez criminalizou nosso ato”, enviou um colega militante. E agora? Ser ou não ser jornalista de um periódico burguês que, porém, fala mais alto que um palanque? Eis a questão...

Continua...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

DIANTE DE SI – PARTE 1 DE 3


Durante a graduação ele não foi um aluno brilhante, mas nem de longe foi um aluno qualquer. Armando liderou por três anos o Centro Acadêmico de Comunicação Social, apelidado carinhosamente de CACOS pelos integrantes. Desde jogar o bebedouro quebrado na sala do reitor até ser preso por cuspir na cara de um PM durante um protesto, várias são as lembranças que aquecem o coração dele. A graduação veio com um canudo entupido de um passado honroso, aos olhos dele, mas de um futuro incerto. No momento que recebia os aplausos pelo nome chamado, no caminho até o palco ele ia refletindo sobre o que aquilo significava. Depois, lá de cima, olhando aqueles rostos maquiados, aqueles colegas perfumados e familiares orgulhosos, a pergunta que ele se fez foi: e agora?

Três meses depois, ele tinha o apoio da família, mas era estranho o aperto no coração que sentia ao saber notícias de seus amigos arrumando bons empregos em assessorias de comunicação, ou nas detestáveis redações de grandes jornais, que ele tanto criticou em vários momentos. Quatro meses depois, a bomba: “o filho é teu”, disse Alice, com uma barriga mínima para uma gravidez de cinco meses. Ele não quis acreditar. “Era uma orgia, porra! Você nem deve lembrar quantos te comeram naquele dia”, se desesperou. Ela argumentou que ele estava porre, mas deve lembrar que ela pediu muito pra que ele não gozasse dentro. Levando as mãos à cabeça, lembrou de como aquela irresponsabilidade foi deliciosa no momento. “Eu só descobri mês passado, porque minha barriga quase não cresceu e minha menstruação é irregular”, explicou ela, dizendo que nem sentir enjôos, sentia.

Cinco meses depois de formado, a família já o pressionava para arrumar emprego. “Um eu sustento, mas sustentar mais uma criança eu não posso”, avisou o pai de Armando. A angústia já o dominava quando soube que um jornal impresso estava contratando. Ele revia as fotos de um protesto a favor da democratização da comunicação que fez dois anos antes em frente à redação em que ele poderia estar no dia seguinte. A noite foi longa, mas depois de ter rolado na cama por muitas horas ele finalmente cochilou e sonhou com uma linda criança sorrindo pra ele. Ele a pegava no colo, e em seguida o bebê fofo mordia os ombros dele com a gengiva. Ele acordou às seis, com aquela imagem do bebê na cabeça. Antes das oito da manhã ele estava na redação. Ele foi indicado por um professor que sempre o achou promissor. O teste consistia em acompanhar uma equipe de reportagem e fazer uma ou duas matérias ao voltar para a redação.

Para a surpresa dele, a primeira pauta era cobrir um protesto de estudantes. Quando chegaram ao trecho da avenida bloqueada pelos manifestantes, ele logo identificou alguns "companheiros". Para justificar-se aos colegas jornalistas, disse que ficaria olhando de longe “pra fazer uma apuração por outro ângulo”. A equipe desceu, fez fotos, entrevistou estudantes, polícia e transeuntes. E Armando lá, escondido e morrendo de vergonha. Eis que um policial começa a provocar os estudantes. Chama-os de veadinhos. Um estudante, como de praxe, reage atirando pedras. Basta. A confusão se generaliza. Balas de borracha. Pedradas. Cassetetes descendo. Sangue escorre. Eis que, bem diante de Armando, um policial passa a rasteira num estudante e covardemente o acerta uma coronhada na cabeça. O estudante grita. Armando mira o rosto. É semelhante. Lembra muito. Não. Não lembra, é: o sucessor dele no CACOS.

A confusão se dissipa. A polícia consegue desbloquear a via. Motoristas de carro e ônibus e muitos trabalhadores nos coletivos xingam os estudantes detidos quando passam por eles. Armando vê tudo isso também. A equipe volta à redação de um jornal de linha editorial extremamente conservadora. Agora ele tem que escrever, sabendo que se escrever como pensa ser a verdade o emprego não será seu. Ele lembra-se da militância. Do discurso, do filho, do passado. Pensa no futuro... pensa no agora... e agora?
Continua...