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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Eu fotografei o silêncio

Encontrei Nicole, uma flor paraense de Paragominas, no Sertão dos Inhamuns-Crateús, bem no coração do semiárido cearense. Eu não sou fotógrafo profissional, e nem me considero um amador bom, mas percebi como há pessoas que ganham naturalmente a simpatia das câmeras. Essa moça linda de cinco anos é uma delas. Eu a encontrei numa mesa de negociação na comunidade Malhadas, em Quiterionópolis - CE, e fiz um clique. Fiz outro. As fotos iam ficando boas. Eu olhava pra ela e dizia com meu riso pidão o quanto queria fotografar mais. Ela me olhava de volta. Esperava eu chamar e ia sorrindo pra onde eu indicasse. Ela sempre queria ser fotografada mais e mais e mais e mais.. Sem nenhum de nós falar muita coisa, percebemos como era divertido brincar daquilo. E fui clicando e ela foi sorrindo, pulando, fazendo pose, caras e bocas. Eu me derretia por completo quando ela olhava as fotos para as quais posou e... simplesmente sorria. Ela só sorria. E cada sorriso me dizia uma coisa diferente. Ela não falava com a boca, mas com todo o resto do corpo. Essa menina é um cinema mudo. Como diria Manoel de Barros, "É difícil fotografar o silêncio".

























quarta-feira, 20 de novembro de 2013

EU TENHO CARA DE LADRÃO




Mami e eu. Foto de Celso Rodrigues

Era um fim de tarde típico de Belém. Minha irmã Iaiá, nossa amiga Jaci e eu devolveríamos uns filmes à locadora que ficava no subsolo do shopping Castanheira, próximo de casa. Um centro comercial luxuoso rodeado de periferias, inclusive o bairro onde cresci. Pra nós qualquer rua asfaltada parecia praça, quem dirá um lugar como aquele. Lembro de ter ido muitas vezes até lá com os colegas só pra brincar de se esconder, ou simplesmente pra andar por ali, pois tudo era muito caro, e quase não tínhamos como comprar nada. Naquele dia não foi diferente. Após devolvermos os VHSs fomos caminhar, viver naquele espaço nosso momento de lazer.


Entramos na loja Yamada, que é bem popular, e nisso encontramos um pacote de chocolate mm largado sobre uma prateleira da sessão de móveis. Estava aberto. Alguém comprou e esqueceu ali. Ficamos alguns minutos nos perguntando se pegaríamos ou não. Jaci insistiu que deveríamos. Pegamos. Fomos pegos em seguida. Um homem engravatado nos segurou pelo braço e nos levou a um corredor próximo dali. Com outros clientes nos olhando, como se fôssemos marginais, fomos interrogados. Tratados como ladrões. “Nós temos filmagens de vocês roubando isso”, falava o engomado. “Então pega lá a filmagem”, desafiei. O homem me olhou feio e exigiu que eu não me rebarbasse. O chicote doeu no meu coro. Me calei.


Hoje, pensando melhor, sei bem. Eles perceberam que não roubamos. Aquela loja não vendia chocolate, nem qualquer coisa que não fossem artigos de magazine. Ele ameaçou ir com a polícia na porta de casa se não trouxéssemos dinheiro no dia seguinte. Disse que aquele bombom custava o que hoje equivaleria a 20 conto. Tivemos de raspar todas as nossas economias pra "pagar" aquela quantia sem nossos pais saberem. Foi a primeira vez que percebi uma coisa: tenho cara de ladrão. Depois, inclusive como repórter, muitas vezes quiseram me prender junto com os caras que entrevistava. Ir trabalhar sem crachá era ruim. Ninguém acreditava que alguém como uma cara como a minha pudesse ser jornalista


Em 2011 fui à Espanha. Parei num orelhão de Madri pra falar com o povo de casa. Um homem veio. Me olhou de cima a baixo. Achei que era gay. Continuei. Outro veio. Me olhou mais ainda. Comecei a ficar preocupado. Continuei falando, mas agora me esforçando pra não transmitir preocupação ao outro lado da linha – minha mãe morreria. Quando me olhou o terceiro avisei que precisava desligar. Minhas pernas já estavam trêmulas. Estava longe da minha comitiva. E sabia qual olhar era aquele. Após desligar veio um guarda. Me pediu desculpas pelos olhares. Disse que ali perto anos antes haviam explodido uma estação de metrô. Dessa vez me confundiram foi com terrorista mesmo.


Tenho essa cara de ladrão não pelo sangue de descendente de portugueses oriundo de papai, mas pelo sangue africano da minha mãe. Eu sou descendente de escravos. Sou preto. Historicamente preto, de beiço grande e cabelo crespo. Da periferia ocupada por ex-escravos. Libertos sem qualquer direito à dignidade. Minha pele não tem tanta melanina e alguns me confundem com branco. Mas branco não tem cara de ladrão. Eu tenho. Sou um jornalista com cara de ladrão. As pessoas se acham inteligentes quando rotulam as pessoas assim. Eu nunca roubei. Nunca matei. Sou trabalhador. E tenho cara de ladrão. E seu racismo com isso?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UM SERTANEJO - 11º DIA

Sou um amazônida me aventurando no Sertão. Parte dessa aventura registrada diariamente em meus manuscritos compartilho com quem possa querer saber...

Acordei às cinco e meia, mas o sol já entrava em minha janela aberta antes disso. Estava ansioso para conhecer as profundezas do sertão. Sou e acho que sempre serei um rato urbano, mas conhecer o interior do mundo me fascina. Seria minha primeira vez onde, conforme imaginava, certamente seria um dos locais mais doloridos, fascinantes e poéticos do Brasil. Fiz questão de abrir bem os olhos e o coração. E fui, como quem mergulha naqueles rios largos, escuros e profundos da Amazônia de onde vim.

Desde os primeiros metros na estrada de chão olhei com carinho a vegetação completamente diferente da que estou acostumado. Ia tentando entender o significado daquilo. Plantas secas e entre elas árvores com folhas de verde bem vivo. Cactos ao lado de galhos floridos. Vi alguns Jegues. Como o jegue é poético. O olhar bem dentro do olho de um animal desses faz você tocar sua própria existência mais profundamente do que se pode estar preparado. É um olhar doce, prestativo, profundo, misterioso. Talvez se um jegue e uma preguiça se encararem lágrimas cairão mutuamente.

À media que o caminho se alongava a caatinga parecia dançar forró, recitar cordel. Numa viagem pessoal em meio aquilo lembrei de Gonzagão quando vi os galhos secos e as cercas de estaca decorarem a estrada. Pareciam nos dar boas vindas. À primeira vista parecia tudo coisa morta, sem vida. Mas logo havia folhas verdes de novo. Comecei a confrontar aquilo com o xote, os cordéis, as quadrilhas e todas as outras referências carregadas por mim daquele lugar onde jamais havia estado.

Comecei a pensar que caatinga é o retrato do Brasil. Basta um pequeno sereno, basta um pequeno sorriso de água para tudo ficar pleno. Inicialmente desistimos daquele lugar cheio de espinhos, cheio de galhos secos e cinza. Mas é apenas a vida em estado de dormência e adaptada escassez d’água. Basta um pouco de irrigação pra ficar tudo verde, colorido, explicitamente vivo. O sertão é uma lição de vida. Ensina que é preciso muito pouco para ser possível viver. É um cenário formado por versos com rimas fáceis, com estrofes simples, mas com conteúdo rico, vivo, inteligente.

De repente comecei a pensar que não há lugar no mundo mais verbal do que o sertão. As piadas, as músicas, o cordel, as histórias, tudo é dito, escrito e cantado de uma forma muito especial por estas pessoas de sotaque forte. O cearense então, não fala, recita. O sotaque nordestino, especialmente o cearense, foi feito para o verbo. Toda cultura nordestina é muito verbal e verbalizada. O cearense, tenho a impressão, é mais.

Se é verdade que o meio interfere no sujeito e na sujeita, se o mineiro é um tanto mais tradicionalista sob influência da firmeza das serras e o carioca é expansivo e alegre influenciado pela liberdade do mar, então eu só posso supor que a caatinga é uma obra de arte travestida de bioma. Um poema disfarçado de lugar.
_____________________
Todas as fotos foram feitas por mim neste mesmo dia.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Uma informação por favor: Onde fica a Passárgada?


"Lá o tempo espera Lá é primavera Portas e janelas ficam sempre abertas Pra sorte entrar... ...Tem um verdadeiro amor Para quando você for"
(Monte- Brow-Antunes)
"Aproveitar a tarde sem pensar na vida
Andar despreocupado sem saber a hora de voltar"
(Carlos-Carlos)

"Melhor viver, meu bem
pois há um lugar em que o sol brilha pra você
chorar, sorrir também e depois dançar
na chuva quando a chuva vem" (Jeneci)

""Leva-me tu, corremos após ti. O rei me introduziu nas tuas câmaras; em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que vinho; os restos te amam"
(Cânticos dos Cânticos, versículo 4)

Quando era criança demais pra ser jovem, e velho demais pra ser carregado no colo, ouvi falar de uma tal Passárgada. Não sei se foi um tal Manel ou uma tal Bandeira quem me falou dela. Um dia tomei um porre, um soco na cara ou uma tapa no peito da existência (algo assim) e decidi encontrar essa tal Passárgada sem saber que a procurava, acho. Nessa busca por me perder em algum lugar entrei num chagão ladrilhado com pedras disformes que alguns mais invejosos resumiriam a meros cacos de tijolo. Antes de chegar à Passárgada havia uma escada mal acabada à direita e uma portícula com uma escada desenhada dentro à esquerda. Parecia haver gente ali. Que bom! Seriam testemunhas oculares do meu triunfo, ainda que não fosse dado a eles o privilégio de ver.

Antes da Passárgada havia um portão de ferro de grades grossas e cadeado pequenininho. Depois dele uma porta de madeira bordada de vidro e entre eles uma mulher. Depois da porta havia um piso de madeira. Era muito aconchegante, refrescante, leve... Mas se fosse calor demais eu poderia olhar pra cima e ser abanado por um ventilador lustroso. Se o chão ficasse duro demais - por preguiça, teimosia ou algo assim - ao lado haveria uma cama macia. Mas a cama poderia ficar muito estreita ou entediante, por isso adiante poderia haver uma índia - a mesma moça da porta - preparando comida com direito a sorrisos tímidos e disfarçadamente fogosos.

Quando a comida ficasse muito cheia, por ser amigo do rei, ele poderia me arrumar um quarto espaçoso, onde num extremo houvesse livros ou fotos com recheio de lágrimas, no outro computador encantado com músicas do repertório da mãe d’água e na outra ponta uma cama grande. Caso tudo isso ficasse grande demais, por ser amigo do rei, eu poderia ter a mulher que eu amasse - no caso, a índia. Sentaria encaixado entre as coxas dela sobre aquele colchão caso algum ruído exterior me mandasse ir embora. Mas depois eu fui. E descobri como gozar com isso. Passárgada foi feita pra entrar e sair, ir e vir...


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Círio de lucidez

As mesmas ruas. Os mesmos enfeites. As mesmas expressões de dor de promesseiros e a mesma cara de entusiasmo dos vendedores às margens da romaria. Ao fim do Círio de Nazaré todos foram comer as mesmas maniçobas, brincar na mesma praça da República e/ou encher a cara do mesmo jeito em algum bar por aí. À noite o parque de diversões continuou lotado. Na segunda feira, porém, quase ninguém foi trabalhar. Na terça isso virou manchete: “Mais da metade dos trabalhadores de Belém faltam na ressaca do Círio”. Nesse mesmo dia, contudo, ainda menos pessoas bateram ponto. Não havia engarrafamento, não havia tumulto. As pessoas simplesmente não saíam para trabalhar e sim para partilhar sonhos e compartilhar favores, por isso não tinham pressa e iam de ônibus dirigidos em troca de qualquer troco ou boa conversa por motoristas.

Na quinta o prefeito fez pronunciamento ao vivo em todos os canais de TV e rádio. Pediu para as pessoas voltarem aos postos de trabalho pois a cidade precisava arrecadar, as crianças precisavam estudar e havia muita gente precisando de médico. Entretanto não havia tumulto em frente ao pronto socorro, nem protestos por aula na frente das escolas. A fala do prefeito obteve a menor audiência da história da TV paraense. As crianças estavam participando de aulas nas comunidades, interagindo com as pessoas e descobrindo a vida longe das salas de aula e os médicos estavam indo de casa em casa voluntariamente. De noite as pessoas iam para a frente das casas conversar, contar histórias, namorar ou simplesmente observar as crianças brincando. Os megaconglomerados de comunicação fecharam definitivamente seis dias depois por ausência de mão-de-obra interessada e completa falta de audiência do público, que agora se auto-informava.

Passada uma semana as autoridades se manifestaram distribuindo panfletos. Dessa vez a convocação era para os policiais voltarem ao trabalho, pois a cidade viraria um caos. Em contrapartida os PMs tomaram atitude de eles mesmos distribuírem maconha e pó de boa qualidade em rodas de conversa sobre as consequências do consumo exagerado de entorpecentes. Bate-papo regado a muita música, muito namoro e espaços para livres manifestações. O tráfico perdeu o sentido. Jovens agora se sentiam importantes tentando vencer disputas de várias modalidades esportivas, de vídeo game ou acadêmicas que começaram a ser promovidos. Roubar num lugar onde ninguém mais era apegado a bens materiais foi perdendo a graça. Se outrora a juventude da periferia não tinha medo de morrer, agora podia sonhar.

A cada dia um empresário se suicidava. Havia pressão de Washington e União Europeia por uma resposta do governo brasileiro diante daquele "caos". A Vale parou. Belo Monte também. Especialistas do Brasil e dos EUA especularam influência chinesa ou russa, e quase houve confronto internacional por conta disso. Enquanto isso as grades das casas das cidades paraenses foram todas doadas para escultores produzirem arte e calçadas foram quebradas de forma organizada para cultivo de flores e árvores. Plantações inteiras de soja deram lugar a casas com enormes quintais. Agroecologia foi adotada como modelo único no campo, e até mesmo os centros urbanos os quintais produtivos foram resgatados, com hortaliças sem pesticidas, plantas medicinais e criação de galinha caipira, por exemplo.

Cerca de 10 meses depois o Pará foi desmembrado da federação e considerado inimigo da nação brasileira e do Mercosul. Ninguém mais saia ou entrava legalmente. Um muro começou a ser construído para envolver todo o estado com a promessa de se tornar a maior obra da construção civil nacional.  Um boicote internacional foi declarado contra os paraenses depois que em várias reuniões de economistas, camponeses e feirantes daqui a economia foi reorganizada tendo como foco principal o bem viver. Foi declarada moratória para a dívida pública. Politicamente as decisões mais importantes eram tomadas quase sempre em consenso popular. De avião foram atirados vários panfletos avisando que mísseis e ogivas nucleares foram apontados contra nosso território, mas ninguém daqui ligou muito.

...

Em um ano era Círio novamente, mas dessa vez sem arcebispo pois este também se sentiu ameaçado pela falta de obediência das pessoas e foi embora. Na procissão, curiosamente, não havia mais casas levadas sobre a cabeça dos romeiros, pois todos conseguiram direito à moradia sem precisar fazer promessa. Quase não havia manifestações individuais. As pessoas simplesmente davam as mãos ou se abraçavam durante o percurso. E antes do final da celebração de encerramento liderada por sacerdotes de várias expressões religiosas choveu pela primeira em mais de 200 edições do evento. Alguns interpretaram isso como as lágrimas de Deus, outros apenas curtiram, dançaram, correram e pularam feito crianças.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Amor de black bloc



Foto:  Mídia Ninja

"Mandei fazer
de puro aço luminoso um punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na avenida central
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer"
(Caetano e Gil)

Havia muita gente e muita polícia. Era a primeira vez dela numa passeata. Passado o estágio probatório, depois de ter se arrependido de não ter ido às ruas durante as jornadas de junho a professora Maria não resistiu à tentação de participar do piquete e do ato na greve dos professores. Parecia-lhe justo, embora estranho no começo. Sentia uma enorme emoção por estar ali. Não sabia descrever qual, mas era bom. Ela parou no meio da rua e começou a rodar ao redor do próprio eixo. Enquanto girava vertiginosamente notou sorrisos, lágrimas, cartazes e liberdade. Observar aquela praça e aqueles prédios como nunca antes. Percebeu o quanto gente indignada, apaixonada combina mais com a rua do que carros e suas buzinas.

De repente uma multidão corre na direção dela. Ela sente medo e ao mesmo tempo quer ver o que se passa. Acompanha o movimento das pessoas, mas ao perceber a possibilidade simplesmente volta e vai ver. Dá de cara com pessoas mascaradas quebrando portas de vidro e atirando coquetéis molotov. Era um filme real. Assustador e excitante. Fica estática. Depois reage. Se esconde. A polícia vem. Algumas pessoas enfrentam. Outras correm. Parecia ensaiado. Sentiu nojo da polícia e não sabia o que pensar dos encapuzados. Um deles se esconde ao lado dela. Susto. O coração pulsa. Ela olha. Ele nem aí. Ela olha. Ele tira a blusa da cara. Ela olha. Ele fala oi.

“Tá assustada por que, gatinha?”, pergunta o garoto. Ela não responde. Mas não para de olhar. “Tu sente medo quando vê PM usando balaclava? Tu sente raiva quando sabe que uma lei escrota foi aprovada em votação secreta no senado? Tu deixa de ir votar toda eleição por saber que os programas das urnas eletrônicas podem ser facilmente manipulados, sobretudo no interior? Tu deixa de bater palma pro governador mesmo sabendo que as contas públicas não têm transparência e que todos os cargos de confiança da secretaria de finanças são ocupados por pessoas da ligadas ao gestor? Pois é dessas máscaras que tenho medo, e por isso também venho aqui e quebro tudo que simboliza corrupção e capitalismo”, disse ele, num sussurro quase gritado.

“Como é seu nome?”, perguntou Maria. “João”, foi atendida quando ele já se ia. Ele virou-se. Se olharam. “Porra, João e Maria é muito clichê”, brincou ele inclinando levemente a cabeça, e soltando um sorriso cínico. Os dois riram com certa timidez. Saíram dali. Foram revistados e liberados. Ela se segurou para não gargalhar quando percebeu ele coçando a própria testa com o dedo médio fazendo cotoco enquanto um cabo R. alguma coisa dava um pequeno sermão sobre vagabundos infiltrados em manifestações. O casal trocou telefone. Depois se falaram quase todos os dias. Maria sempre queria saber no fim do dia se João estava bem. Ele nunca falava quando ia agir. Ela só via na TV.

Ficaram. Fizeram amor. Trocavam mensagens de texto. Certo dia ela deixou escapar para uma colega de docência quem era o cara. “Nossa! Pra mim esses caras são marginais. Se infiltram no meio de manifestações pacíficas para tocarem o terror”. Soltou Amanda, que em seguida se arrependeu, mas já tinha falado. “Eu acho que você anda assistindo muito a Rede Globo”, rebateu Maria, que também se arrependeu. Amanda já se preparava para pedir desculpas quando foi interceptada pela companheira.

“Eu não concordo com ele. Uma vez tentei discutir e parei de falar quando ele me perguntou quem é mais violento, eles ou o Estado e eu respondi que claro, era o Estado. João em seguida olhou bem dentro dos meus olhos. Desde então eu vou pra todas as assembleias da nossa categoria. Estou tentando me organizar mesmo depois da greve. Agora tenho moral para criticar”, concluiu. Em seguida as duas foram ministrar aula nas salas sem ventilador, com carteiras, equipamentos e respeito em falta e muitas crianças violentadas da periferia.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Luta de Classes. Parte 3 de 3


Quando Guto chegou em frente à sede da DATA, sofreu o impacto  de vários carros adesivados estacionados. Logotipos do Conselho Tutelar, da Polícia Militar e de vários órgãos da imprensa ("Mas até imprensa?") gritavam na cara dele o tamanho da cagada na qual Carlinhos, o irmão dele, estava metido. Yasmin chegou um pouco depois. Teve dificuldades para encontrar uma vaga para estacionar. Quando finalmente conseguiu, ela pegou o que precisava no carro e andou rápido, quase correndo. Guto foi procurar Carlinhos no térreo. Yasmin tinha de subir ao terceiro piso onde ficava a sala do diretor, o delegado Ícaro Silva.

Era um prédio sem elevadores, mas, se houvesse, pais e responsáveis pelos adolescentes infratores certamente teriam de vir pelo de serviço. Repórteres e Yasmin certamente viriam pelo social, e mesmo a mãe dela permitiria que os pobres fardados de PM também as acompanhassem. Porém, só havia escadas. Três lances delas. Ela chegou suada e irritada por isso, mas as repórteres repararam só no seu lindo cabelo-porém assanhado-, as unhas bem feitas e as mãos sem aliança, a marca da saia e da blusa, o salto muito baixo e uma cor imprópria praquele ambiente e a maquiagem levemente borrada no olho esquerdo; os policiais e repórteres (não gays) repararam como ela era gostosa.

         Guto chegou onde o irmão estava e ficou parado um breve instante diante dele. Tantas coisas passaram pela sua cabeça nesses poucos segundos. Reparar o irmão enquanto a mãe ia trabalhar, chutar a bunda de uns moleques com quem ele brigava às vezes, o distanciamento quando Guto foi estudar em outro bairro e a história recente na qual as amizades ruins faziam a mãe passar mal quando o filho caçula demorava a chegar. Mas espera! Ali com o irmão não haviam malacos! Conhecia aqueles meninos. Não eram “de onda”. "Como foi isso, mano?!", perguntou. Enquanto o irmão contava a versão dele, foi dando uma raiva de ser pobre. Mas o ódio dominou seu corpo quando uma lágrima caiu no mesmo momento em que aquele menino que viu crescer falava: "Você contou pra mamãe?"

         O cabo Leo ao lado do delegado Ícaro iniciavam a entrevista. A Record tinha prioridade porque estavam ao vivo no Balanço Geral. O cabo foi o primeiro a falar. "O CIOP passou pra nós a denúncia da comunidade que não aguentava mais a atividade de tráfico naquela casa e nós fom[É MIL REAIS QUE VOCÊ QUER?! EU TE DOU]". Todos se olhavam sem entender de onde vinha a voz. Era um rapaz negro, com semblante de ódio e uma carteira em punho diante das câmeras. "Por que você não fala, policial, que pediu mil reais pro meu irmão e só quando não recebeu forjou a droga?! Pois saiba que isso tudo foi filmado. Tá aqui nesse celular!", denunciou.

         A imitação de jornalista que apresentava o Balanço pediu pra cortar. O delegado imediatamente pegou Guto pelos braços e o convidou para conversar. O jovem de repente olhou para o que estava fazendo e hesitou. Flashes e luzes de LED, microfones, perguntas, tudo aquilo ao mesmo tempo. Então de repente não pareceu ruim sair dali. Ao abrir a porta da sala do diretor, havia uma moça loira sentada diante de uma TV ligada na Record ao fundo. "Sente aqui. Vou despachar a imprensa e já conversamos", avisou Ícaro. As duas mãos pretas à cabeça, olhos lacrimejantes e nó na garganta. Nesse instante, eis que uma mão branca o toca. "Se você tivesse feito isso com minha mãe eu teria gostado", disse Yasmin. Ele levantou. Procurou palavras e encontrou um abraço. "Tá tudo bem".

         Os jornalistas foram informados pela produção de que a denúncia do garoto não seria veiculada. "Esse policial só passa coisa bacana pra gente", justificaram a maioria dos editores. Foram embora logo em seguida. O delegado mandou soltar todo mundo. "Isso aqui não é uma seccional. Nunca mais chame a imprensa sem antes falar comigo. Não vou prosseguir na denúncia, mas se algo acontecer à família desses jovens aqui, ou a eles, eu guardarei a gravação do celular do denunciante pra garantir que vou atrás de você", avisou o delegado. O cabo engoliu a seco.

         Enquanto isso, na sala do diretor, o abraço continuava. "Você está melhor?", perguntou Yasmin. "Não. Agora estou com outro problema", respondeu. "Qual?!", perguntou ela se afastando para encará-lo. "Você falou com a sua boca perto da minha. Senti o calor dela. Agora só vou ficar bem se prová-la", desabafou. "Você é cínico. Mas eu não estou aqui pra ajudar?", sussurrou. Os lábios grossos dele se misturaram aos lábios finos e rosados dela. Línguas ensopadas se misturavam quando o delegado interrompeu. "Obrigado por cuidar dele, Yasmin", descontraiu. Yasmin fazia pesquisa de campo sobre mediações de conflitos em delegacias especializadas. Saiu de lá com um bom exemplo pra pesquisa.

PRÓLOGO


         Ela deixou Guto e o irmão na Cabanagem. Sentiu medo quando viu toda força expressiva da periferia. Depois de três meses de namoro já conseguia ver aquilo como lugar de gente. Mas o namorado nunca ia ao prédio dela. Nem quando a velha da mãe dela não estava. Até que um dia ela teve uma ideia. Ligou alegando que estava só e passando mal. Ele teve de ir. De madrugada. Ela pagaria o táxi. Ela o esperava de camisola próximo ao elevador de serviço enquanto a essa altura o porteiro pensava qual conta pagaria com a grana que recebeu pra desligar as câmeras de segurança. "Não vai entrar ninguém aqui?", perguntou ele, excitado e assustado ao mesmo tempo. "Não. O elevador de serviço só é usado em horário comercial", disse ela. "O trauma dele passou depois disso", contou ela a uma amiga dois anos depois do fim daquele namoro.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Luta de Classes. Parte 2 de 3

Guto descia as escadas, degrau a degrau, com um nó na garganta e uma sensação de raiva misturada com vergonha. Lá em cima Yasmin observava a porta que dá acesso às escadarias balançar. Ensaiou várias vezes descer, mentir que a mãe não era tão chata assim, mas desistiu quando foi intimada a entrar pela velha.  No outro dia o rapaz não voltou. Ela perguntou por ele ao responsável pela impermeabilização da piscina, que não soube dizer para onde teria sido remanejado. Ele pensa nela na obra, num o mormaço sob uma sombra de concreto. É sempre bom lembrar, mas sempre dói. Ela pensa nele enquanto dirige com os vidros abertos para poupar gasolina. Lembranças estranhas de um momento estranho.

O tempo passa. Primeiro dias, depois semanas. Estudante de direito que era, Yasmin conseguiu acesso à Divisão de Atendimento ao Adolescente (DATA) para fazer uma pesquisa. Ele conseguiu outro emprego. Agora era barman dia sim dia não em uma choperia. De dia continuava fazendo cursinho. Numa noite dessas Yasmin apareceu lá. Junto com uns jovens, um homem mais velho e a mãe dela. Parecia celebração familiar. Ele pediu pra ir embora. Alegou estar se sentindo mal, mas o imediato dele pediu que pelo amor de deus aguentasse, que compraria até remédio, mas não havia como substituí-lo.

Para completar, logo depois disso "aquela bruxa", como ele a definiu, veio pedir um drinque especial para o sobrinho. Mas pediu que um garçom levasse só depois da meia noite. Ele completaria dezoito anos, seria o presente simbólico da maioridade. Ela até pareceu simpática. Não o reconheceu. Provavelmente ela falaria do mesmo modo com uma máquina de lavar do tipo que fica invisível quando desligada. A noite passou rápido. Antes que Guto notasse a família de Yasmin fora embora.

No dia seguinte ela acordou tarde. Não estava com ressaca, mas como só teria as últimas aulas a tarde, e estava em dia com as tarefas acadêmicas, resolveu ouvir música. Ele acordou cedo. Foi ao cursinho. Ela recebeu um telefonema. "Precisa vir aqui. Acabamos de saber que o Conselho Tutelar apreendeu muitos adolescentes numa boca de fumo com armas e muita droga", disse o contato dela na DATA. Ela se arrumou. Contrariada. E foi. Quase ao mesmo tempo o telefone de Guto tocou.

- Alô. É o senhor Augusto?

- É ele sim. Quem fala?

- Aqui é o cabo John da Polícia Militar. Acabamos de encontrar seu irmão, o menor conhecido como "Carlinhos" numa boca de fumo no meio de um bando de vagabundo no bairro da Cabanagem. Estamos levando ele pra DATA. É bom a mãe de vocês ou você mesmo se for de maior ir lá responder por ele.

- ...

A mãe é hipertensa e certamente passaria mal ao saber dessa notícia. O pai já se foi. Ele mesmo teria de ir à DATA.

Conclui semana que vem...

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Luta de Classes. Parte 1 de 3



Precisando de grana pra pagar o cursinho, Augusto teve de arrumar emprego logo. Um amigo dele conseguiu uma vaga como ajudante numa empresa especializada em aplicar impermeabilizantes na construção civil. Em seu primeiro dia de trabalho ele chegou atrasado. Ligou para o chefe que pediu pra ele ir até o primeiro piso onde ficava a piscina. Era um prédio de 12 andares recentemente entregue, com praticamente todos os apartamentos ocupados, cheios de gente de classe média puta com o serviço ruim da construtora por não entregar o imóvel sem ter piscina vazando.

“Guto” se identificou ao porteiro com seu crachá provisório e chegou ao elevador. Eram dois, na verdade. Pegou o de serviço sem reparar na diferença entre um e outro. Errou o andar. Foi parar no segundo piso. Desceu e apanhou o social. Nele desciam uma mulher e a filha dela. “Pra quê tem elevador de serviço?”, provocou a dondoca, irritada com a presença dele, que se olhou no espelho e se perguntou por que ela havia reparado que ele era empregado. No bairro da cabanagem (periferia de Belém) onde ele mora todo mundo perguntou se ele faria exame de fezes, de tão arrumado. “Será que tenho tanta cara assim de pobre?”, se questionou.

A crise interna dele foi interrompida por aquele rosto. A filha dela, com seus olhos verdes como o mar, os cabelos tipo os das moças das novelas, loiro, sedoso, brilhante, surpreendentemente saudável emitiu um sorriso parcial, meio que pedindo perdão pela mãe. Tudo passou muito rápido e ele desceu, trocou de roupa no banheiro dos empregados e foi trabalhar. Não era muito difícil a sua tarefa. Esfregar um produto de forma organizada e padronizada rápido o suficiente para que ele não secasse até estar corretamente espalhado.

Depois do trabalho a coluna dele conversava com a vontade dele de ganhar dinheiro sobre a necessidade de ir logo pensando em outra coisa melhor para fazer. A menina branca aparecera de novo. Sentada num banco diante de uma piscina vazia e em reforma. Ele precisou pegar seu par de sandálias esquecido num banco quase ao lado dela. Depois do episódio do elevador ele ficou se sentindo um lixo fora da lixeira, por isso não tinha a menor autoestima para cumprimentos. Ele apanhou o objeto e voltou sem levantar a cabeça. “Agora eu entendo”, ouviu uma voz falar atrás de si. “Oi?”, falou Guto voltando-se a ela. “Queria entender de onde tava vindo esse fedor de chulé”, descontraiu a garota. Ele voltou. Pegou os chinelos dela, jogou pra longe e brincou: “Pronto. Agora vai passar”. Os dois riram. Quando perceberam estavam sentados conversando sobre música, filmes.

De repente, já passava das oito da noite. Conversaram bastante, mas ele precisava ir embora. Ela perguntou onde ele morava. "Cabanagem", respondeu. “Eu te levo lá”. Se ofereceu ela. “Não pode.” Determinou ele. “Ué, por quê?”, se espantou a moça. “Porque não posso subir no carro de estranhas. Minha mãe não deixa”, provocou. Ela sorriu e pra Guto foi como se o mundo tivesse no pause. “Meu nome é Yasmin”, se apresentou ela e estendeu a mão. Ele segurou. “Prazer”, saldou a jovem. Ele disse o próprio nome, a puxou, deu um beijo no rosto, respondeu “satisfação”, em seguida a puxou para um abraço e sussurrou ao ouvido dela: “Me ensinaram que o prazer vem depois”. Ela tentou disfarçar ter gostado da surpresa e o chamou para ir até o aparamento dela buscar as chaves do veículo.

Quando abriu a porta a mãe dela estava na sala. Ele a viu sentada de costas para ele no sofá. Guto não queria entrar, mas Yasmin insistiu. Ele mentiu que havia esquecido mais uma coisa na piscina e para não atrasá-los precisava descer para buscar. A moça argumentou que buscava as chaves num instante, e depois pegariam juntos o objeto na piscina, e já se preparava para falar mais argumentos quando foi interrompida pela dona. “Yasmin, venha cá”. Os dois se olharam. A pele dela de repente ficou branca de novo, os olhos dela eram de novo verdes, o apartamento dela pareceu coisa de rico e ele lembrou nem sonha em ter carro tão cedo. Ela voltou a perceber a pele negra dele, os cabelos “ruins” dele, a roupa com os panos desbotados de tantas lavagens dele e umas manchas de pele estranhas na face dele.

Ela entrou no apartamento sem dizer nada, mas deixou a porta entreaberta. Ele chamou o elevador. Chegou o social, mas ele não quis entrar. Chamou de novo. Ela saiu do apartamento. Ele já havia descido as escadas pensando se no outro dia voltaria ou não àquele trabalho escroto.


Continua...

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Formas de curtir no Feicibuqui




Quase cientificamente falando, "Curtir" no feicibuqui pode ser*:

1-Curti mas não vou comentar porque não tenho nada a dizer no momento a altura disto;

2-Curti mas isso também não é lá essas coisas pra merecer comentário;

3-Curti muito não, mas como eu vou com a tua cara vou te dar essa forcinha;

4-Curti não, mas como você me curtiu também vou te curtir por gratidão;

5-Curti, mas só pra você saber que não gostei do comentário dessa vagabunda em seu Fêici. Aguarde a DR;

6-Curti pra te dar uma força naquela promoção;

7-Curti como forma de gratidão ao seu comentário;

8-Curti, mas não cliquei no botão por vergonha de você descobrir que curti;

9-Curti pra você reparar em mim;

10-Curti mesmo.

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*Baseado em algo que já escrevi certa vez em meu Fêici.
Imagem do genial TonhOliveira