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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Jornalismo Policial: Atarefa de contar histórias como a de Santa Maria



Sou da periferia, prefiro ser chamado de preto a moreno, não tenho problema nenhum em declarar quando acho outro homem bonito, mas, confesso, até hoje não me acostumei com o rótulo de “Repórter Policial” que me dão, devido trabalhar no caderno de Polícia de um jornal diário do Pará há um ano. Ser repórter dessa editoria quer dizer, por exemplo, que se trabalhasse no Rio Grande do Sul eu provavelmente teria participado da cobertura da tragédia que já matou até agora 235 e deixou outros 118 jovens feridos em Santa Maria/ RS por conta de um incêndio na boate “Kiss”. Lidar com números e informações fortes como essas, acompanhar imagens tensas assim – in loco – e me perguntar todo dia se essas coisas valem a pena é o que tenho feito durante esse tempo. Eu, que jogava esse caderno policial no lixo antes de folhear qualquer jornal, que classificava esse tipo de publicação como JA - Jornalismo Abutre, hoje defendo que a editoria policial não deve acabar tal como precisa ser, e sim tal como é.

Como exercício mental, não de quem precisa de um emprego, mas de quem precisa se sentir importante para a sociedade no que faz, resolvi criar em minha mente um mundo imaginário sem os cadernos de polícia. Cheguei à conclusão de que seria o cúmulo da banalização da vida quando assassinato cometido nas periferias da nação parar de render manchetes, ou quando a morte não for mais notícia. Aliás, é impossível desligar esse debate da questão da criminalização das periferias, ou do racismo propriamente dito. Para mim, a origem de todas as brincadeiras de mau gosto e de toda abordagem desrespeitosa que se faz nessa editoria vem justamente do desrespeito ao valor da vida dos empobrecidos, principalmente negros. Já vi uma jornalista perguntar ao delegado, após mais uma morte na favela, com as seguintes palavras: “Uma vez que a ficha policial desse elemento era extensa, podemos dizer que é ‘menos um’ pra perturbar”? Ela nunca perguntaria isso se fosse o homicídio de um deputado corrupto branco.
Imagem compartilhada no Facebook demonstra até que ponto o preconceito favorece o desrespeito à vida.

Enquanto a morte nas periferias ganham títulos derivados de + 1, são as mortes dos filhos da classe média que costuma ser espetacularizadas. Nesses episódios percebemos o quanto a curiosidade mórbida independe de classe social. Tanto em mortes de viciados negros quanto de estudantes brancos há jornais que vendem como água imagens que mais parecem parte de documentários de autópsia ou fotos de peritos do IML. Percebe-se também que a exploração da morte, da tragédia, da crueldade, é algo que definitivamente interessa às pessoas. Aceitar isso, aliás, foi o primeiro choque de realidade que levei no meu trabalho.

A ROTINA DA REPORTAGEM

A tarefa diária do jornalista de “Polícia” é correr atrás de notícia. Ao contrário das outras editorias, nós dificilmente saímos da redação com algo planejado. As coisas vão acontecendo e a gente tem que criar mecanismos para não perder nenhuma notícia. Possuir fontes no IML, e entre a população é fundamental. Mas nenhuma fonte é mais segura do que a polícia. Por isso existe historicamente nas editorias policiais de todo o Brasil uma relação muitas vezes promíscua entre repórteres e policiais. Diante de nós repórteres, toda sorte de abuso é compartilhada, há jornalistas que até mesmo batem em presos. Até mesmo a linguagem adotada no meio dá a exata ideia dessa relação. O ato de ir atrás de notícias nessa editoria chama-se “Ronda”, por exemplo.

Voltando a falar sobre morte, hoje posso dizer que consegui criar um mecanismo mental que me permite encarar qualquer tipo de imagem de pessoas mortas durante o trabalho. Alguns colegas meus defendem que não é necessário ver o corpo para escrever a matéria, mas eu discordo. O que faz um bom texto é a apuração, e às vezes um detalhe na cena do crime é o elemento mais importante da história a ser contada. Mas o que me faz perceber que eu ainda sou eu, como o peão para os personagens imersos em sonhos no filme “A Origem”, é a compaixão pelos que ficam. No dia que eu parar de ficar com nó na garganta quando percebo que aquilo que escrevo significa uma perda irreparável para muitas pessoas, certamente demonstrará que passou da hora de eu abandonar essa editoria.

Por isso penso que o caderno de polícia já começa errado pelo nome. Os jornalistas dessa editoria não deveriam agir como se fossem assessores de comunicação da PM. A linha de pensamento que move abordagens preconceituosas, racistas e que no fim das contas acaba por incentivar o ódio e a intolerância que geram violência letal é que precisa ser revista antes de tudo. Perceber que mesmo um ladrão, um estuprador ou um assassino de criança também é um ser humano, que existe um contexto sócio-político por trás dos homicídios nas periferias é algo que requer um mergulho muito além da superfície, o qual nem todos estão dispostos a fazer. Afinal de contas, compreender o processo não vende jornal, não rende status, continuar fazendo o que se faz sim. Mas, acredito, é possível prender a atenção das pessoas, vender, sem vender a alma. Vi muitos comentários interessantes a respeito de muitos textos a respeito da tragédia gaúcha – e brasileira – demonstrando que é possível re-humanizar o jornalismo sem perder a clientela.


Não, eu não acredito que isso vá mudar amanhã, mas penso que até lá, quem realmente discorda dessa linha não precisa esperar o dono do jornal passar por algum tipo de epifania para seguir os próprios princípios. A partir de pequenos gestos, como por exemplo ouvir o que os suspeitos têm a dizer, ao invés de escrever “populares” escrever “pessoas”, ao invés de dizer “bandido morto” escrever “vítima”, o olhar já pode ser modificado. O Brasil é considerado o maior país católico do mundo, possui um grande número de protestantes, mas não consegue ser cristão na hora de pensar em soluções para a violência além de punir. A pena de morte em nosso país é uma realidade velada, cujos juízes são os policiais e os advogados são os jornalistas omissos diante disso.

Rogo para que um dia os cadernos e as editorias que lidam com situações de morte possam ter como chavões não mais palavreados importados dos quartéis, e sim dos jardins. E como quem não precisa esperar o carnaval pra poder sambar, eu vou escrevendo como acredito que tenha que escrever, assim como outros bravos colegas. Portanto, é preciso evitar o olhar maniqueísta dos grandes jornais, porque nele há pessoas sensíveis e que quando são competentes conseguem fazer um trabalho digno. Defendo a humanização dos cadernos de polícia, e penso que o título da editoria também poderia ser revista, mas discordo de quem pensa que eles não deveriam existir. Parafraseando Vinicius de Moraes: “Cadernos de Polícia? Melhor não termos. Mas se não temos, como sabê-lo?”