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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Igreja Como ela é - Ela e Eles

Inspirado na Obra de Nelson Rodrigues, conto aqui histórias que deveriam ser mentirosas, mas não são





Era a missa de casamento dela com ele. Ele, o noivo, estava no altar todo contente. De certa forma, aquele momento era uma espécie de troféu para quatro anos tentando conquistar aquela moça linda que, apesar de sempre ter sido solteira e demonstrar carinho por ele, jamais quis namorar. Mas ele conseguiu finalmente emplacar o namoro depois do primeiro e inacreditável beijo. Menos de duas semanas depois disso já estava noivo. Passado um mês, lá estava ele. No altar. Orgulhoso de si próprio. Um vencedor.

Diante do noivo, ele: o padre. Como era o único presbítero daquele lugarejo, não havia outro a não ser ele para celebrar aquele matrimônio. Claro que havia alguns fofoqueiros que só estavam naquela igreja pra procurar defeitos, é verdade, mas todo mundo aparentava felicidade. Menos o padre. “O que o senhor tem? Está passando mal?”, perguntou uma madrinha do altar, pouco antes da cerimônia começar. O padre, sempre faceiro, estava muito sério. “Senti uma pontada no coração, mas não se preocupe. Vai me fazer bem celebrar, tenho certeza”, respondeu, já se saindo para a sacristia afim de vestir a batina.

Ao lado dele, o noivo, e um pouco abaixo dele, o padre, estava ela, a noiva. Ela não chorava. Não sorria. Estava séria. Prestando bem atenção ao que o presidente da celebração falava. A cerimônia seguiu normalmente. À medida que o tempo passava, o semblante dela ia mudando, de passividade à raiva. Ele, o noivo, não notava. Estava muito feliz. Ele, o padre, parecia olhar pra tudo menos nos olhos dela. Conforme o rito já conhecido, ele jurou fidelidade a ela na tristeza, na doença e nas outras coisas. Depois do “aceito”, dele, o noivo, foi a vez dele, o padre, perguntar a ela que antes de responder puxou uma arma debaixo do vestido.
...
Era uma tarde quente da Amazônia quando finalmente o novo padre chegara ao vilarejo. Recém-ordenado, ele foi visitar a casa da coordenadora da comunidade, orgulhosa do fato de que todos os cinco filhos, quatro homens e uma mulher, eram lideranças da igreja. Antes mesmo que o presbítero chegasse, ele já havia se comprometido em ir primeiro a casa dela e depois ir à igreja, tamanha era a moral da mulher. Os filhos na mesa batiam papo com o sacerdote. A filha ajudava a servir. Num desses momentos a moça e o sacerdote se encararam. E ninguém viu quando ele chegou perto dela na cozinha, com o coração palpitante, e sussurrou na orelha escondida sob os cabelos sedosos "você é muito linda!". Ela não fez cara de espanto, ou de irritação. Ela sorriu discretamente desviando o olhar. E ele teve as boas vindas que queria.
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Ela sentia dor. “Quer que eu pare?”, perguntou ele, todo preocupado. “Pode vir, mas vem devagar, por favor. Não tenho toda a sua a experiência”, respondia ela, recém-desvirginada, a ele, o padre. Antes disso, ele já tinha dito saber que aquilo não era certo, mas estava apaixonado, por isso não conseguia ficar longe dela. Ela disse à mãe que iria à capital. E para a comunidade o padre estava em retiro. Se encontraram numa cidade a 100 km dali. Local onde seria ponto de encontro semanal dos dois a partir de então.
...
Ele, o pretendente, era muito querido por ela, a coordenadora da comunidade. Ela queria que a filha casasse com ele. Posses. Trabalhador. Família boa. Partido melhor não podia haver. Ela, a filha da líder comunitária, não o maltratava por causa da mãe, mas achava ele um babaca. Chegava lá falando de como fez pra comprar o carro novo, como era linda a fazenda, como era viajar de jatinho. Quando isso a irritava em demasia, mais tarde, depois que ele ia embora, ela, a amante do padre, costumava entrar pelos fundos da casa paroquial, e levar tapas na cara, puxadas no cabelo, mordidas no cangote e soltar berros sussurrantes de “Ai meu Deus!” involuntariamente enquanto gozava.

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A menstruação atrasou. De repente ela viu a chance de finalmente ficar com o ele, o padre. “Eu não posso assumir essa criança! Sou filho único e minha mãe não aguentaria tanto desgosto”, inventou a melhor desculpa que pôde. Durante duas semanas ela tentou convencê-lo de que poderiam ser felizes, e ele já não conseguia mais ter criatividade para desculpas. Então ela, a futura mãe solteira, resolveu tomar uma medida desesperada. Aceitou namorar com o panaca do pretendente, e aceitou casar, desde que fosse logo. Ela arranjou tudo para o padre não ter tempo de fugir ou arrumar outro religioso para presidir a celebração. Ela não queria esconder o filho ou coisa parecida, queria provocar ciúme. Ela aguardava ele falar a qualquer momento pra parar com aquilo.

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Com a arma na mão, ela disse pra ele confessar que a amava. A igreja toda gritando, a velharada correndo, gente desmaiando, o noivo se mijando, e o padre lá, covarde como era, fingindo não entender nada. Aliviava o coração do homem de batina saber que ele ao menos morreria ali, sem ter de conviver com aquela culpa. Diante do silêncio dele, o padre, e das calças mijadas dele, o noivo, o tiro. Seco. Escorreram do padre, as lágrimas. Do noivo, mais mijo. Pelo vestido, o sangue. Com um só tiro, várias vidas se perderam.