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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Círio de lucidez

As mesmas ruas. Os mesmos enfeites. As mesmas expressões de dor de promesseiros e a mesma cara de entusiasmo dos vendedores às margens da romaria. Ao fim do Círio de Nazaré todos foram comer as mesmas maniçobas, brincar na mesma praça da República e/ou encher a cara do mesmo jeito em algum bar por aí. À noite o parque de diversões continuou lotado. Na segunda feira, porém, quase ninguém foi trabalhar. Na terça isso virou manchete: “Mais da metade dos trabalhadores de Belém faltam na ressaca do Círio”. Nesse mesmo dia, contudo, ainda menos pessoas bateram ponto. Não havia engarrafamento, não havia tumulto. As pessoas simplesmente não saíam para trabalhar e sim para partilhar sonhos e compartilhar favores, por isso não tinham pressa e iam de ônibus dirigidos em troca de qualquer troco ou boa conversa por motoristas.

Na quinta o prefeito fez pronunciamento ao vivo em todos os canais de TV e rádio. Pediu para as pessoas voltarem aos postos de trabalho pois a cidade precisava arrecadar, as crianças precisavam estudar e havia muita gente precisando de médico. Entretanto não havia tumulto em frente ao pronto socorro, nem protestos por aula na frente das escolas. A fala do prefeito obteve a menor audiência da história da TV paraense. As crianças estavam participando de aulas nas comunidades, interagindo com as pessoas e descobrindo a vida longe das salas de aula e os médicos estavam indo de casa em casa voluntariamente. De noite as pessoas iam para a frente das casas conversar, contar histórias, namorar ou simplesmente observar as crianças brincando. Os megaconglomerados de comunicação fecharam definitivamente seis dias depois por ausência de mão-de-obra interessada e completa falta de audiência do público, que agora se auto-informava.

Passada uma semana as autoridades se manifestaram distribuindo panfletos. Dessa vez a convocação era para os policiais voltarem ao trabalho, pois a cidade viraria um caos. Em contrapartida os PMs tomaram atitude de eles mesmos distribuírem maconha e pó de boa qualidade em rodas de conversa sobre as consequências do consumo exagerado de entorpecentes. Bate-papo regado a muita música, muito namoro e espaços para livres manifestações. O tráfico perdeu o sentido. Jovens agora se sentiam importantes tentando vencer disputas de várias modalidades esportivas, de vídeo game ou acadêmicas que começaram a ser promovidos. Roubar num lugar onde ninguém mais era apegado a bens materiais foi perdendo a graça. Se outrora a juventude da periferia não tinha medo de morrer, agora podia sonhar.

A cada dia um empresário se suicidava. Havia pressão de Washington e União Europeia por uma resposta do governo brasileiro diante daquele "caos". A Vale parou. Belo Monte também. Especialistas do Brasil e dos EUA especularam influência chinesa ou russa, e quase houve confronto internacional por conta disso. Enquanto isso as grades das casas das cidades paraenses foram todas doadas para escultores produzirem arte e calçadas foram quebradas de forma organizada para cultivo de flores e árvores. Plantações inteiras de soja deram lugar a casas com enormes quintais. Agroecologia foi adotada como modelo único no campo, e até mesmo os centros urbanos os quintais produtivos foram resgatados, com hortaliças sem pesticidas, plantas medicinais e criação de galinha caipira, por exemplo.

Cerca de 10 meses depois o Pará foi desmembrado da federação e considerado inimigo da nação brasileira e do Mercosul. Ninguém mais saia ou entrava legalmente. Um muro começou a ser construído para envolver todo o estado com a promessa de se tornar a maior obra da construção civil nacional.  Um boicote internacional foi declarado contra os paraenses depois que em várias reuniões de economistas, camponeses e feirantes daqui a economia foi reorganizada tendo como foco principal o bem viver. Foi declarada moratória para a dívida pública. Politicamente as decisões mais importantes eram tomadas quase sempre em consenso popular. De avião foram atirados vários panfletos avisando que mísseis e ogivas nucleares foram apontados contra nosso território, mas ninguém daqui ligou muito.

...

Em um ano era Círio novamente, mas dessa vez sem arcebispo pois este também se sentiu ameaçado pela falta de obediência das pessoas e foi embora. Na procissão, curiosamente, não havia mais casas levadas sobre a cabeça dos romeiros, pois todos conseguiram direito à moradia sem precisar fazer promessa. Quase não havia manifestações individuais. As pessoas simplesmente davam as mãos ou se abraçavam durante o percurso. E antes do final da celebração de encerramento liderada por sacerdotes de várias expressões religiosas choveu pela primeira em mais de 200 edições do evento. Alguns interpretaram isso como as lágrimas de Deus, outros apenas curtiram, dançaram, correram e pularam feito crianças.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lucidez em sonho...

Quem dera se todos nós pudéssemos praticar o desapego sem sofrimento.Ótimas reflexões!

Bom dia, Eraldo!

Cristiany