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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Amor de black bloc



Foto:  Mídia Ninja

"Mandei fazer
de puro aço luminoso um punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na avenida central
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer"
(Caetano e Gil)

Havia muita gente e muita polícia. Era a primeira vez dela numa passeata. Passado o estágio probatório, depois de ter se arrependido de não ter ido às ruas durante as jornadas de junho a professora Maria não resistiu à tentação de participar do piquete e do ato na greve dos professores. Parecia-lhe justo, embora estranho no começo. Sentia uma enorme emoção por estar ali. Não sabia descrever qual, mas era bom. Ela parou no meio da rua e começou a rodar ao redor do próprio eixo. Enquanto girava vertiginosamente notou sorrisos, lágrimas, cartazes e liberdade. Observar aquela praça e aqueles prédios como nunca antes. Percebeu o quanto gente indignada, apaixonada combina mais com a rua do que carros e suas buzinas.

De repente uma multidão corre na direção dela. Ela sente medo e ao mesmo tempo quer ver o que se passa. Acompanha o movimento das pessoas, mas ao perceber a possibilidade simplesmente volta e vai ver. Dá de cara com pessoas mascaradas quebrando portas de vidro e atirando coquetéis molotov. Era um filme real. Assustador e excitante. Fica estática. Depois reage. Se esconde. A polícia vem. Algumas pessoas enfrentam. Outras correm. Parecia ensaiado. Sentiu nojo da polícia e não sabia o que pensar dos encapuzados. Um deles se esconde ao lado dela. Susto. O coração pulsa. Ela olha. Ele nem aí. Ela olha. Ele tira a blusa da cara. Ela olha. Ele fala oi.

“Tá assustada por que, gatinha?”, pergunta o garoto. Ela não responde. Mas não para de olhar. “Tu sente medo quando vê PM usando balaclava? Tu sente raiva quando sabe que uma lei escrota foi aprovada em votação secreta no senado? Tu deixa de ir votar toda eleição por saber que os programas das urnas eletrônicas podem ser facilmente manipulados, sobretudo no interior? Tu deixa de bater palma pro governador mesmo sabendo que as contas públicas não têm transparência e que todos os cargos de confiança da secretaria de finanças são ocupados por pessoas da ligadas ao gestor? Pois é dessas máscaras que tenho medo, e por isso também venho aqui e quebro tudo que simboliza corrupção e capitalismo”, disse ele, num sussurro quase gritado.

“Como é seu nome?”, perguntou Maria. “João”, foi atendida quando ele já se ia. Ele virou-se. Se olharam. “Porra, João e Maria é muito clichê”, brincou ele inclinando levemente a cabeça, e soltando um sorriso cínico. Os dois riram com certa timidez. Saíram dali. Foram revistados e liberados. Ela se segurou para não gargalhar quando percebeu ele coçando a própria testa com o dedo médio fazendo cotoco enquanto um cabo R. alguma coisa dava um pequeno sermão sobre vagabundos infiltrados em manifestações. O casal trocou telefone. Depois se falaram quase todos os dias. Maria sempre queria saber no fim do dia se João estava bem. Ele nunca falava quando ia agir. Ela só via na TV.

Ficaram. Fizeram amor. Trocavam mensagens de texto. Certo dia ela deixou escapar para uma colega de docência quem era o cara. “Nossa! Pra mim esses caras são marginais. Se infiltram no meio de manifestações pacíficas para tocarem o terror”. Soltou Amanda, que em seguida se arrependeu, mas já tinha falado. “Eu acho que você anda assistindo muito a Rede Globo”, rebateu Maria, que também se arrependeu. Amanda já se preparava para pedir desculpas quando foi interceptada pela companheira.

“Eu não concordo com ele. Uma vez tentei discutir e parei de falar quando ele me perguntou quem é mais violento, eles ou o Estado e eu respondi que claro, era o Estado. João em seguida olhou bem dentro dos meus olhos. Desde então eu vou pra todas as assembleias da nossa categoria. Estou tentando me organizar mesmo depois da greve. Agora tenho moral para criticar”, concluiu. Em seguida as duas foram ministrar aula nas salas sem ventilador, com carteiras, equipamentos e respeito em falta e muitas crianças violentadas da periferia.

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