Seu Santo é uma espécie de anti-mito, pois teria todas as condições para ficar no mais completo anonimato em nossa sociedade padronizada. É idoso, um pouco tímido, corpo franzino, não possui curso superior, não é rico, não tem parentes importantes, e veio do interior. No entanto, esse senhor de voz grave e palavras contundentes virou uma espécie de ícone da militância de Ananindeua, sendo uma das figuras mais conhecidas nos partidos e movimentos de esquerda nas terras do Ananim.
O nome de batismo de Seu Santo é Francisco Pereira da Costa. Nasceu na cidade de Aquirás no interior do Ceará. O único filho homem dos cinco da família Costa recebeu da mãe também o apelido pelo qual ficou conhecido. “Ela me pegava no colo e me apresentava a todos com o seu santo”, comenta o homem que diz estranhar quando o chamam de Francisco, tamanha a intimidade com o apelido pelo qual é conhecido.
A infância foi vivida na beira de um braço de rio que só corria pelo inverno. Brincava muito na água onde logo aprendeu a nadar. Quando maior, ajudou o pai na roça até completar 18 anos. Então foi morar em Fortaleza e viver lá por sua própria conta. Seu Santo se define como alguém inquieto, que não consegue ficar fazendo a mesma coisa o tempo todo. “Por volta de 1957 pra 58 meus primos viriam a Belém, e eu encasquetei de vir também”, conta Seu Santo, meio envergonhado da atitude impulsiva.
Chico – como era conhecido em seu ambiente de trabalho o Seu Santo – veio a Belém sem avisar os seus pais. Veio de navio, que era o único meio de transporte além de avião que chegava de fortaleza ao Pará. A viagem demorava quatro dias, isso se o navio não tivesse que aportar na desaparelhada estiva de São Luiz, que ai já se ia mais um dia. Somente quando chegou a Belém Seu Santo escreveu avisando aos pais de sua nova aventura. “Isso foi uma judiação”, reconhece.
Depois de cinco anos em terras paraenses, foi visitar os pais pela primeira vez. Quando quis voltar a Belém era período de estiagem, e nessas circunstâncias o governo cearense requisitava aos navios que trouxessem os moradores de lá de graça. Seu Santo resolveu então vir de trem. Apanhou um de Fortaleza a Teresina, e de lá foi a São Luiz. Chegando a capital maranhense, quando estava sentado, um senhor simpatizou com seu jeito e o convidou para trabalhar com ele naquela mesmo. Resultado: o agora meio nômade Seu Santo ficaria dois anos trabalhando no Bairro do Desterro, onde eram desembarcadas cargas de peixes. Ele conta que na ocasião tinha que dormir lá mesmo, junto a vários nordestinos “retirados”.
“Depois de dois anos no Maranhão, eu entendi que deveria vir pra cá (Belém), onde estavam meus parentes, minha tia, meus primos”, lembra Seu Santo, que no início da década de 60 casou-se com sua prima Terezinha com quem teve 10 filhos. Na época de seu casamento, ele trabalhava na construção civil, como ajudante de pedreiro. Aposentou-se em 1996 já como encarregado de obras após trabalhar em empreitadas importantes como o prédio do Instituto Teológico Batista Equatorial, que fica ao lado do Shopping Castanheira, o Istituto Bom Pastor, escola católica mais famosa de Ananindeua; e seu último trabalho antes da aposentadoria foi na construção do prédio do Jornal “O Liberal” na 25 de Novembro.
História que se confunde com a de Ananindeua
Seu Santo quando casou foi morar na primeira ocupação de Ananindeua, chamada de Brasília. Sua mulher foi quem conseguiu demarcar o lote da família, enquanto ele trabalhava. Na ocasião, início da década de 60, um homem chamado Lauro Bragantino descobriu que aquelas terras não tinham dono, e como muitas pessoas moravam de favor na época (maioria nordestinos), resolveram ocupar.
Depois disso o deputado Sebastião Souza (MDB, do grupo do Jader Barbalho) ajudou a população que invadiu o Pimental do deputado Ferro Costa, onde havia muita terra improdutiva. “Como Sebastião Souza era puxa-saco do Jader, resolveu dar àquela ocupação o nome de 'Jaderlândia'”, conta Seu Santo, que observou, principalmente após a ocupação do Jaderlândia, a cidade de Ananindeua sofrer uma espécie de “boom” de ocupações, que marcou o crescimento da cidade.
O homem grisalho que a não ser pelo “é” que pronuncia à nordestino tem um sotaque muito próprio da região de Belém viu a cidade crescer com uma velocidade vertiginosa. “Eu lembro que onde é hoje a BR 316 funcionava uma linha de trem, a Belém-Bragança”, conta o senhor que não sabe explicar como tantas pessoas morreram no trilho, apesar do barulho estridente que a máquina fazia. Para cada pessoa morta nos trilhos era pregada uma cruz, nas proximidades do local da morte da pessoa. Ele conta que em frente ao local que hoje é a Itapemirim havia uma cruz, por exemplo.
“Quando eu cheguei aqui a carroceria dos ônibus era feita de madeira e era confeccionada em Belém mesmo, pelos carpinteiros daqui. Então os ônibus eram todos com carroceria de madeira que eram montadas sobre o chassis, e janelas tinham uma cavidade que servia pra gente levantá-las”, relata o imigrante nordestino que via o povo se assustar quando o busão da época arrancava e fazia com que as janelas de madeira caíssem com beira, assustando e as vezes machucando, inclusive, os passageiros.
Os primeiros ônibus com carroceria de alumínio foram trazidos pelo político Zeno Veloso de São Luiz. A cidade de Belém foi crescendo, bem como a frota de veículos, desordenadamente como nós a conhecemos, Ananindeua e Belém continuaram sofrendo com a criminalidade, pela falta de urbanização e políticas públicas e Seu Santo observou tudo isso passar, mas não passivamente.
O militante Seu Santo
Em Ananindeua, as mobilizações de esquerda, como atos públicos, abaixo-assinados, articulação de partidos políticos, etc. historicamente foram articulados por membros da Igreja Católica. O movimento cristão responsável por isso é conhecido como Comunidades Eclesiais de Base (CEBS). Essa eclesiologia católica é marcada pela harmonização dos avanços das ciências humanas com a teologia moderna. A partir dessa experiência surgiu a Teologia da Libertação, cujo principal teólogo, Leonardo Boff, foi perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício, então presidido pelo Cardeal Hatzinger (hoje Papa Bento XVI).
Seu Santo, membro da primeira comunidade da Paróquia Cristo Rei (Guanabara, Ananindeua), a São Pedro, junto com os demais foram formados por esse jeito de fazer Igreja. Segundo ele, as CEBS são o resultado genuíno da igreja que se faz povo e do povo que se faz igreja. “Se hoje eu sei alguma coisa, foi graças aos estudos bíblicos e formações que tive na comunidade”, admite.
Seu Santo se define como uma pessoa que joga sementes, que ajuda a fundar coisas para que outros venham e façam a mudança. Ele foi membro fundador e presidente da Associação de Moradores da Brasília. Participou ativamente do plebiscito contra a ALCA, que recolheu mais de dez milhões de assinaturas em todo o Brasil, ajudou a articular o primeiro Grito dos Excluídos de Ananindeua e fundou o Grupo Fé e Política da Paróquia Cristo Rei, isso só para citar algumas coisas.
No início da década de 90, as CEBS perceberam que seria importante eleger um representante de seu ideal para a Câmara de Vereadores de Ananindeua. “Os representantes do povo deveriam ser escolhidos pelo povo, e para o projeto que o povo decidiu é que o mandato deveria ser voltado”, conta orgulhoso Seu Santo que ajudou a eleger João Amorim vereador. Durante o mandato, o novo vereador do Partido dos Trabalhadores descobriu que Edmilson Rodrigues (ex-prefeito de Belém) tinha uma casa pra vender. Ele avisou aos membros das CEBS que se mobilizaram e compraram a casa que hoje é conhecida como “Casa das CEBS”, localizada no centro de Ananindeua.
A relação das CEBS com o PT, inclusive, é intrínseca. “O PT nasceu praticamente numa sacristia”, conta Renato Damasceno, 28, militante do PT e participante das CEBS. Ele fala que essa ligação do PT com a igreja, se dá entre outras coisas porque nos tempos da ditadura, com toda a repressão, as igrejas eram o melhor lugar pra reunir escondidos da polícia, e alguns padres adeptos da Eclesiologia Libertadora católoca não só davam cobertura, como eram membros ativos do movimento, assim como muitos fiéis católicos.
O mandato de João Amorim terminou de forma frustrante, lamenta com um tom de decepção Seu Santo. Segundo ele, João Amorim deixou o poder subir à cabeça, e esqueceu a coletividade. Quando não foi reeleito no pleito subsequente disse que foi traído pelas CEBS e quis tomar posse, sem sucesso, da Casa das CEBS que afirmava ter sido ele o comprador.
Seu Santo em nenhum momento admite o significado que tem para a igreja e para a militância de Ananindeua. Mas em 2006, durante uma reunião do coletivo de esquerda de Ananindeua, que tratava sobre a aquisição de uma rádio comunitária, o experiente militante saiu antes da reunião acabar resmungando que já vira filme igual, que aquilo não daria certo. A reunião acabou na hora em que o Santo saiu, pois os jovens presentes não sentiram estímulo de continuar sem ele. “O Santo é uma pessoa que nos inspira, seu ânimo nos motiva, e sua presença é o símbolo da luta assumida por nós”, comentou na ocasião Zé Maria, 39, presidente da Associação de Moradores do Bairro da Castanheira na época.
Reza a lenda que o senhor que viu Ananindeua crescer era recebido sem aviso na sala de D. Zico antes deste se aposentar do cargo de Arcebispo Metropolitano de Belém. E sua fama não é espalhada com propaganda, outdoors ou coisa parecida. Basta uma reunião com o homem para ficar embasbacado com a lucidez e firmeza de suas palavras. Basta ver o aposentado de 79 anos andar de bicicleta por toda Ananindeua para divulgar as atividades e as campanhas nas quais milita para ter por ele o respeito devido. Com seus olhos miúdos, que lêem sem óculos, ele sempre olha na agenda lotada de atividades antes de marcar (sem furo) a próxima atividade.
No início de 2009 ele sofreu um acidente. Atropelado por uma moto bateu a cabeça e passou dias em coma. De repente toda a Igreja e militância de Ananindeua faziam contato entre si para saber notícia desse homem que apesar da aparente fragilidade só inspira vida. “Eu nunca falei com ele, nunca estive com ele, mas tenho um profundo respeito por tudo o que ele representa”, revela o jovem Rômulo Costa, 21, quando questionado se conhece o Seu Santo.
O cearense radicado no Pará diz que não tem nada de santo. “Se voltasse atrás, jamais casaria com uma prima. Não concordo com isso”, revela o homem que se separou da esposa antes de ela vir a falecer há três anos. Diz também que não foi muito presente na educação dos filhos, pois trabalhava o dia todo; o que tentou foi levá-los à igreja, mas sem sucesso. Se revela um pouco desapontado ao ver que muita coisa não mudou apesar de sua luta. Apesar disso, comenta que não se arrepende de ter votado em Lula, “foi importante colocar um trabalhador no poder, e eu votarei em Dilma (Russef – Ministra Chefe da Casa Civil e candidata de Lula a presidente para as próximas eleições), pois quero ver uma mulher no poder pra ver que diaxo ela vai fazer”, descontrai.
“Acredito nos jovens. Acredito que temos de dar oportunidade a eles para que eles façam a mudança”, revela o senhor que aposta suas fichas, e tudo o que ele semeou, na juventude. “A juventude não deve fazer o que eu fiz, deve fazer coisas novas, pois é essa a beleza de ser jovem”, argumenta.
O homem que escreve uma gazeta mensal com notícias e reflexões sobre fé e política, mora em um quartinho, no terreno que ele comprou ainda em 74 para deixar para os filhos. Mora só, e é conhecido na rua onde mora hoje me dia, na Guanabara, como o homem que planta o jardim em frente à sua casa. As pessoas vêm e destroem, mas ele sempre planta de novo. Ou seja, mesmo para quem está fora das esferas política e eclesial, Seu Santo é conhecido como um homem que semeia. Podem matar as flores, mas o perfume que fica guardado em nossa memória nos motiva a lutar contra os espinhos da vida. “Seu Santos é mais que um homem, é um exemplo” diz Jeruza, 31, militante católica.
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