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terça-feira, 25 de maio de 2010

QUEIMADA - UM CEMITÉRIO DE OPRESSÕES

Força. Doses generosas de brutalidade, adrenalina dor, e.... graça. Esses talvez sejam os grandes ingredientes para tornar tão popular o jogo que alguns conhecem como cemitério, mas é mais conhecido em Belém como queimada. Mas não qualquer queimada. A queimada disputada por verdadeiros gladiadores gays. Uma genuína batalha cercada de tensão e alegria.

O esporte funciona como uma forma de inclusão social de um povo que costuma ser excluído das principais instituições de nossa sociedade: a família, a igreja e a escola. São raras as vezes em que pessoas homossexuais ou bissexuais são aceitas exatamente como são. “Eu até tolero o fresco, mas não suporto a frescura do fresco”, costumam falar as pessoas que, imersas no senso comum, propagam a homofobia, que assim como o racismo é manifestado de forma velada em nossa sociedade.

O que torna especial a relação entre os gays e a queimada, é justamente a inclusão social que o esporte acaba proporcionando a quem é tão acostumado a ficar a margem. No jogo de queimada, ao contrário, os gays ficam no centro e as pessoas tidas como normais é que ficam a margem, admirando o talento dos esportistas ou rindo de graça do bom humor que costuma estar em qualquer ambiente desse público.

ANTES DE JOGAR, O JULGAMENTO

Samantha, 17, não foi batizada com esse nome pelos seus pais. Deles ela recebeu um nome masculino qualquer. Mas desde muito cedo ela percebeu que era ela e não ele, e resolveu escolher esse nome para ser chamada, nome com o qual ela se identifica. “Nunca fui violentada por ninguém. Desde criança percebi que não era igual aos outros meninos”, conta o rapaz que poderia ser facilmente confundida como menina, não fosse pela voz um tanto mais grave e a ausência de seios. Ela diz que em casa às vezes anda ‘como menino’, mas que não costuma sair assim na rua. “Tive minha primeira relação homossexual com 13 anos, mas antes disso eu já sabia que era gay”, afirma a estudante que não enfrenta qualquer repressão familiar, seja dos pais, dos irmãos ou da mãe. Samantha tem uma mãe protestante, por exemplo, membro da Igreja Universal do Reino de Deus, e mesmo que a formação religiosa da mãe afirme que a homossexualidade é um pecado, aceita sua filha de braços abertos da mesma forma como ama os outros dois filhos heterossexuais.

O suhiman Eloi Fernandes, 27, praticamente descobriu que era gay pelos outros. Desde criança, ao demonstrar-se diferente dos outros meninos, tinha que agüentar comentários do tipo “ah, mas esse aí vai ser veado mesmo”, e mesmo antes de saber exatamente o que isso significava, foi percebendo através de piadas e toda sorte de indiretas que aquilo que ele era, seja lá o que fosse, não era bem quisto pela sociedade. “Desde que eu era entendido, a minha família tinha clareza da minha orientação sexual, tanto que, aos 17 anos, quando cheguei a falar pra eles, todos receberam normalmente” diz. Heloi não se veste como mulher, e faz parte de um outro segmento gay, que mantém mais características masculinas, diferente de Samantha.

O cabeleireiro Junior, 23, diferente dos anteriores, passaria despercebido aos ‘radares’ dos mais inexperientes. Junior é bissexual, e, a exemplo de muitos como ele, descobriu que poderia envolver-se afetivamente com pessoa do mesmo sexo relativamente tarde. “A minha vida sempre foi normal. A minha orientação sexual não era essa. Aconteceu de repente, de forma inesperada”, relata o cabeleireiro. Junior foi a uma micareta, e quando já estava com teor alcoólico suficiente no sangue, foi beijado por seu amigo. Para a surpresa do Junior, o beijo foi bom, o arrancou do armário em grande estilo e o jogou nos braços do seu primeiro namorado. “Na rua onde eu moro, ninguém sabe que tenho essa orientação. Sou bem preservado. Jogo bola normalmente com meus amigos e eles nem sonham que também jogo queimada com as gays”.

Três histórias paralelas, que se cruzam na Belém, uma rua do bairro da cabanagem onde costumam jogar aos sábados pela tarde vários gays, bissexuais e travestis o esporte que pode ser considerado deles. “Eu não jogo futebol porque não vou jogar entre os meninos vestida de mulher, também não jogo com as meninas porque apesar de ser gay, eu tenho mais força que elas, por isso o meu esporte predileto é a queimada mesmo; é onde eu me sinto realmente bem”, conta Samantha.

Pelo caminho, muitas provocações e reviradas típicas de cabelos como resposta. Vindo de vários lugares, elas se encontram. Inclusive, entre os gays, quase ninguém usa o artigo “o”, a não ser quando é pra chamar pelo nome de batismo, como por exemplo Diego, ou Eduardo. “Eu não gosto que me chamem de veado”, avisa Junior, que ao encontrar suas amigas as chama de bicha, veado, ou de nomes similares, dando a clara impressão de que, entre elas pode, e para muitos como Junior, somente entre elas também.

Inclusive, a dificuldade de definir o que é ele e o que é ela na queimada disputada por essas pessoas é algo que não deve servir de preocupação. O que convém ser “ele” e o que convém ser “ela” na sociedade tradicional, acabam diluindo-se numa realidade híbrida , uma mistura exótica (apenas para os tradicionalistas) de macho e fêmea, força e graça, certo e errado, que já não andam em separado, ou, mais ainda, jamais existiram para quem está ali, a beira da rua, contando quantas pessoas vão jogar, para dividir os times.

Eloi, que vive jogando em times por aí, em torneios amadores realizados por associações de moradores ou entidades de classe, avalia a aglutinação de cerca de vinte pessoas pra jogar é pouca. “É bacana quando vem mais gente, o jogo fica mais emocionante”, acredita ele. Rapidamente os times se dividem. “Ah, eu não vou jogar não. Tem muita gente forte lá, eu tenho medo de me machucar”, confessa Samantha, se posicionando na calçada pra assistir o jogo que começa.

A PENETRAÇÃO SOCIAL

A queimada é muito utilizada para recreação escolar. Nesse caso, é geralmente disposto com meninas de um lado e meninos do outro. Entre crianças, é muito comum haverem times mesclados também, seja brincando nas ruas ou nas escolas. O local do jogo é um espaço retangular que é dividido com uma linha ao meio para dividir os dois times. Outras duas linhas ficam ao fundo dos dois times; a partir desses limites, ficam aqueles jogadores que foram acertados pela bola sem conseguir segura-la, ou seja, que foram mortos. Assim, atrás do time A, ficam os mortos do time B, e vice-versa. Esse local é chamado de cemitério (daí o nome dado por muitos a este esporte).

O objetivo do jogo, é eliminar (matar) todos os jogadores do outro time. E a estratégia básica do jogo é a combinação da bola de quem ainda não morreu com os mortos no cemitério, e entre estes, os vivos do time adversário ficam encurralados, só podendo recuperar a bola aparando-a, ou quando a bola fica em seu respectivo campo, geralmente quando se morre alguém.

Mas a partir de uma certa idade, a força masculina das graciosas jogadoras gays acaba os distanciando dessa linha Unissex. E além de recreação, o joga acaba demonstrando a força que o esporte já demonstrou em outras modalidades, como o basquete nos Estados Unidos e o Futebol no Brasil em relação ao racismo, a força da inclusão social.

“As pessoas geralmente costumam xingar a gente quando não são acostumados a nos ver jogando. Mas em lugares em que costumamos brincar, isso não acontece.” Revela Eloi, que já viu pessoas chegarem ao extremo da intolerância ao jogar pedras nos homossexuais jogando. Ou seja, pelo exotismo ou pela força de resistir ali, o esporte acaba proporcionado um outro olhar das pessoas, que, se ainda não são de aceitação plena, ao menos não causam hematomas gratuitos e perversos. Samantha conta que há Bairros em que a própria comunidade promove torneios de queimada voltados para o público gay.

“Não vejo problema nenhum em vê-los aí. É um esporte como qualquer outro”, Conta o aposentado Francisco Rodrigues, 57, acostumado com os gritos e com as risadas de quem vive jogando queimada. Já a dona de casa Ivonéia, 27, tem sim algo contra a queimada, ela acha ridículo pessoas que ficam jogando esportes com bola no meio da rua. “Eu não me importo se é queimada, futebol ou Vôlei, eu temo é pela segurança das pessoas. Já pensou se uma bolada acerta a cabeça de alguém? Isso é um absurdo! Eles que vão para uma quadra ou para uma arena, na rua é que não deveriam jogar”, desabafa a moradora.

Um grupo de senhores, jogando baralho no pátio de uma residência próxima a quadra improvisada comentam aos risos que não tão nem aí para o que eles são ou deixam de ser. “É melhor estarem aí brincando do que por aí no mundo das drogas”, chega a comentar um deles. “Pra mim, eles não fedem nem cheiram. Eles ficando lá e eu aqui”, atesta o motorista Juvenal Sena, 45.

Já o gerente de lan house Fabio Pinto, 23, diz que até costuma jogar queimada com ‘elas’, muito embora seja heterossexual resolvido. “Eu só não estou jogando lá porque me machuquei esses dias. Eu tenho vários amigos gays, e tenho muito orgulho deles, são muito esforçados e companheiros”, declara.

O jogo de queimada acontece ao lado de um jogo tradicional de travinha, ou seja, um jogo de futebol geralmente jogado em ruas ou em lugares de pequeno porte em que se colocam duas traves pequenas, geralmente pedras ou sandalhas. Um esporte que se convenciona a se chamar de normal. Lado a lado, ninguém briga com ninguém. Futebol e queimada, heterossexuais e homossexuais coexistindo pacificamente sem que ninguém se quer repare nisto. Para eles, o normal é a tolerância, a mesma rua que pode ser dividida entre várias bandeiras, cores, classes e amores, sem que a face do ódio pelo diferente seja revelada, porque ali, muito graças ao esporte o diferente já é normal.

Inclusive, o clima pacífico no fim da tarde na Cabanagem, um dos bairros mais violentos de Belém, não é graças a igualdade, ao contrário, acontece sim pela aceitação das diferenças. Por exemplo, é diferente a quantidade de pessoas que assistem a travinha e a queimada: na queimada tem muito mais gente, e muito mais gente de todo tipo, inclusive. Os poucos que assistem a travinha são todos heterossexuais, mas a enorme platéia diante das gladiadoras da queimada, são coloridos como a bandeira do orgulho LGBT.

O JOGO – A CORAGEM DE DAR A CARA À BOLADA

A bola de queimada é uma bola de futebol mais seca. “A bola ideal pra jogar é a bola ‘dente de leite’”, revela Diego, sem dúvida a jogadora que mais se destaca na partida. Partida aliás, que é recheada de emoção e imagens impressionantes. Por ser mais seca do que o normal, a bola de queimada, literalmente queima ao entrar em contato com a pele a uma enorme velocidade. A graciosidade com que correm os gays com a bola, a forma quase doce com que arremessam a pelota, contrastam com a violência com que atinge o corpo do adversário. Aquele objeto redondo nas mãos do jogador, correndo graciosamente, com o rosto fechado e ameaçador, é uma bola, mas ao ser arremessada, parece mais uma bola de canhão, um projétil, que é encarada de frente por quem é o alvo com o mesmo semblante de coragem.

Geralmente quando se joga na rua, não há regras definidas, não há espaço definido, ou seja, é quando o jogo é “do mal”. Isso torna o jogo ainda mais impressionante. Pois, jogando a bola do campo normal ao cemitério, o time dividido em duas extremidades vai se aproximando, esmagando o time adversário até o ponto em que, fatalmente, o jogador que ataca fica a poucos metros de quem é atacado.

A bola é arremessada fortemente contra o corpo do adversário, que, com muita técnica e coragem, não só deixam-se atingir, como também, muitas vezes aparam a bola de forma impressionante, e jogam de volta contra o corpo do adversário. Ao contrário do que estabelecem muitos professores de Educação Física nas escolas, quando a bolada na cara não só é permitida, aqui parece que o rosto é o principal, se não o único alvo. Mas acertar bolada na cara não é a jogada mais bonita, a jogada mais bonita é quando um vai jogando no outro, aproximando-se, até que, bem próximos, aquele que certamente seria morto consegue aparar a bola que vai em direção ao rosto a queima roupa(“O quê, bicha?”), e a devolve contra o corpo do adversário. É como se fosse um gol de placa depois de um rally do Vôley.

“Não existe um jogador que se destaque muito dos outros em Belém, mas existe um bairro que é muito respeitado que é o da Pedreira; nenhum time ganha mais campeonatos que eles”, revela Eloi, que não vê possibilidade de um dia a queimada tornar-se um esporte profissional. “O preconceito da sociedade barra essa possibilidade, mas a gente nem liga”.

“Existe o Grupo de Homossexuais do Pará (GHP) que sempre promove campeonatos de queimada, e é uma das missões do movimento conseguir um dia profissionalizar esse esporte”, revela Junior, que graças a contatos com pessoas ligadas a movimentos sociais da causa gay conseguiu adquirir uma maior auto estima para ser plenamente o que sempre foi.

Fosse profissional, o cabeleireiro Diego Frison, 20, morador do distrito de Icoaraci seria certamente um dos destaques do certame. “É preciso ter coragem para jogar. O segredo é posicionar a mão corretamente para aparar a bolada, e precisão na hora de jogar”, conta o craque, que vê em pé de igualdade com ele mesmo o Robson da Pedreira.

“Quando há jogos de campeonato, sempre há casa cheia; tenho certeza que se um dia esse esporte fosse profissional iria gerar muito lucro, porque a dinâmica do jogo em si, e o estilo das jogadores são bastante atraentes”, analisa Samantha, que certamente seria uma das musas do esporte caso isso um dia fosse possível.

A homossexualidade, no melhor sentido que possa ser concebida, é revelada a cada detalhe do jogo. “Ao contrário do que dizem as pessoas, o gay não é só aquele que transa com pessoas do mesmo sexo, existe todo um universo particular que é muito mais profundo do que somente o sexo em si; olhar o gay apenas pelo sexo que ele pratica, é uma visão homofóbica”, revela Eduardo Soares, 25, militante da causa gay.

Os cabelos esvoaçantes, ao sabor do vento provocado pela corrida da bicha que corre, os músculos torneados incham, a jogadora se movimenta graciosamente num movimento de precisão. A bola parte na direção certa, acertando o corpo da adversária provocando um estrondo assustador. A morta grita “Ai, veado, devagar”, “Quer moleza senta no pudim, bicha”, responde a matadora. E assim, um a um, os adversários vão morrendo até que não sobre mais nenhum. Aí, quando todas morrem, cada uma volta para o seu lugar,e o jogo recomeça. Até que chova ou anoiteça demais, quando todas vão para algum lugar juntas, beber vinho.

Assistir a queimada jogada por essas pessoas, é certeza de diversão e adrenalina. A combinação perfeita para qualquer esporte que queira ser bem sucedido. E a queimada em Belém é, pelo menos no ponto de vista da inclusão social. “O gay é o último a assumir o que todo mundo já sabe”, conta Eduardo, que vê nisso uma das maiores importâncias da queimada: Um espaço para que os homossexuais possam assumir o que são, sobretudo para eles mesmos.

6 comentários:

[Ananda] disse...

é isso ai,queimada tem q virar jogo profissional,é um jogo divertido pra quem não sabe,era pelo menos a coisaq mais gostava de bola.
Quanto ao preconceito contra os gays talvez um dia algumas pessoas abram o olho,e vejam q não é assim,que há muito mais do qisso,e q esse preconceito é muito,muito bobo.Eu li a veja desses tempos saiu uma reportagem de gays,bem legal ,a minha geração por incrível q pareça (todo mundo fala mal) tá aceitando um pouquinho mais (apesar de ainda haver akeles chatos qnão aceitam) eisso é uma lição,pelo menos deveria ser visto.Espero q as pessoas q não aceitam comecem a aceitar os outros como são,e não por ela gostar de outra pessoa,isso não é crime,eu considero uma virtude,vc ter a capacidade de amar,e assumir apesar de todos os preconceitos q rodeiam,sem medo dos outros,isso é amar de verdade,não ter medo do q os outros vão pensar.

Léo Santos disse...

Aqui em Porto Alegre não tem queimada, mas, têm bastante gays e bastante preconceito como em qualquer lugar. Toda a forma de combate a exclusão social é bemvinda!

Um abraço!

Nara disse...

Eraaaaldo,
saudade de você.

Homossexualismo é um tema que ultimamente tem sido bem discutido. Eu acho que nós temos que respeitar o outro acima de qualquer coisa. E é isso que falta: respeito.

Beijo,
Nara

Luna Sanchez disse...

Que interessante, eu não sabia da existência desse jogo, digo, dessa modalidade.

Gosto da tua forma consciente e correta de abordar esse (e todos) os assuntos. Gosto mesmo, tu sabe disso.

Beijo, moço.

ℓυηα

Jamylle Bezerra disse...

Interessante esse aspecto da inclusão sobre o jogo. Não conhecia essa denominação (cemitério). Parabéns pelo olhar! Tava inspirado né? :)

Sara disse...

Me custa acreditar que o fato ser gay ou não pode mudar a opinião de alguns sobre os outros, embora sei que existe o preconceito, acho completamente ridículo, pequeno, uma completa estupidez. A maneira de ser de alguém não muda seus conceitos, princípios e atitudes, isso é que se leva em conta as boas atitudes venha de quem vier. Palavras bonitas de igualdade tá na boca de muitos mas é só isso, na prática a maioria é elitista.
Abraço, até a próxima.