Ele se
sentia oprimido com as sandálias e sufocado pelos sapatos. Gostava mesmo era de
sentir os pedregulhos empurrarem pra cima a palma do pé, ter contato direto e
sem intermediários com a perfeição dos defeitos do chão. Sentia-se mais honesto
consigo mesmo pisando em algo sujo, quente ou macio e agradável do que pagar
para fazer propaganda de calçados famosos.
Mas ele não
podia. Os espinhos, o calor, a pobre sujeira, a santa higiene (salve salve), a
boa educação, a ordem da mãe, as regras da empresa, tudo era motivo pra não
andar descalço. Ele aceitou essas desculpas chuviscadas durante a vida toda,
mas sempre dava um jeito de viver a própria liberdade sob si quando dava,
quando não era convencionalmente proibido.
Certo dia
ele voltava pra casa trilhando o mesmo caminho de sempre. Vinha pensando na
vida, cabisbaixo, e reparou nos próprios passos, cada vez mais curtos. Não era
mais a sandália que ele enxergava, mas sim amarras em seus calcanhares de pé a
pé. Olhou ao lado, pro outro, pra frente, pra trás, olhou de novo e não
conseguia mais enxergar calçadas e sim obediência. Correntes. Um pé atrás do
outro. Cada pessoa puxava a outra e a outra puxava o um e por aí se ia.
Mas mesmo
assim ele não conseguia se libertar a partir da própria base. Tinha vergonha
desse negócio de fazer o que quisesse. Até que um dia, ao chegar da rua, deu um
passo estranho. Era leve. Sentiu o mesmo peso dos pés de criança, quando
procurava as pedras mais salientes indo rumo ao igarapé de Colares, de quando
corria solto atrás de uma bola em campos de várzea, de quando lavava os pés e
via naquela água suja escorrendo para o ralo todo o resumo do dia. Olhou pra
baixo e viu a sandália arrebentada. Jogou ela e o outro par no lixo e ouviu o
tintilar do metal quando elas chegaram ao fundo. Ele sorriu. Estava livre.
Desde então
ele anda descalço pra onde precisa ir. Todos estranham, mas, se perguntam, diz simplesmente
que a sandália arrebentou graças a Deus, ou que paga promessa, ou que tem
trauma porque a mãe foi assassinada por um bandido fazendo-a engolir o próprio
chinelo. Não precisava de razão para seguir a própria vontade, e sim
das desculpas certas. Quem não tinha
intimidade suficiente pra perguntar estranhava não apenas aqueles pés
imoralmente desnudos, mas também aquele olhar distante, meio autista e os
sorrisos bobos do nada para o nada. Ninguém percebia como ele estava na verdade
voando, como nos melhores sonhos de outrora. Com os pés no chão ele se
conectava com todo o universo ao seu redor, principalmente com as coisas invisíveis
e desimportantes.
Um comentário:
q maravilha ... "Ninguém percebia que ele estava na verdade voando, como nos melhores sonhos de outrora. Com os pés no chão ele se conectava com todo o universo ao seu redor, principalmente com as coisas invisíveis e desimportantes." ...
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