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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Luta de Classes. Parte 3 de 3


Quando Guto chegou em frente à sede da DATA, sofreu o impacto  de vários carros adesivados estacionados. Logotipos do Conselho Tutelar, da Polícia Militar e de vários órgãos da imprensa ("Mas até imprensa?") gritavam na cara dele o tamanho da cagada na qual Carlinhos, o irmão dele, estava metido. Yasmin chegou um pouco depois. Teve dificuldades para encontrar uma vaga para estacionar. Quando finalmente conseguiu, ela pegou o que precisava no carro e andou rápido, quase correndo. Guto foi procurar Carlinhos no térreo. Yasmin tinha de subir ao terceiro piso onde ficava a sala do diretor, o delegado Ícaro Silva.

Era um prédio sem elevadores, mas, se houvesse, pais e responsáveis pelos adolescentes infratores certamente teriam de vir pelo de serviço. Repórteres e Yasmin certamente viriam pelo social, e mesmo a mãe dela permitiria que os pobres fardados de PM também as acompanhassem. Porém, só havia escadas. Três lances delas. Ela chegou suada e irritada por isso, mas as repórteres repararam só no seu lindo cabelo-porém assanhado-, as unhas bem feitas e as mãos sem aliança, a marca da saia e da blusa, o salto muito baixo e uma cor imprópria praquele ambiente e a maquiagem levemente borrada no olho esquerdo; os policiais e repórteres (não gays) repararam como ela era gostosa.

         Guto chegou onde o irmão estava e ficou parado um breve instante diante dele. Tantas coisas passaram pela sua cabeça nesses poucos segundos. Reparar o irmão enquanto a mãe ia trabalhar, chutar a bunda de uns moleques com quem ele brigava às vezes, o distanciamento quando Guto foi estudar em outro bairro e a história recente na qual as amizades ruins faziam a mãe passar mal quando o filho caçula demorava a chegar. Mas espera! Ali com o irmão não haviam malacos! Conhecia aqueles meninos. Não eram “de onda”. "Como foi isso, mano?!", perguntou. Enquanto o irmão contava a versão dele, foi dando uma raiva de ser pobre. Mas o ódio dominou seu corpo quando uma lágrima caiu no mesmo momento em que aquele menino que viu crescer falava: "Você contou pra mamãe?"

         O cabo Leo ao lado do delegado Ícaro iniciavam a entrevista. A Record tinha prioridade porque estavam ao vivo no Balanço Geral. O cabo foi o primeiro a falar. "O CIOP passou pra nós a denúncia da comunidade que não aguentava mais a atividade de tráfico naquela casa e nós fom[É MIL REAIS QUE VOCÊ QUER?! EU TE DOU]". Todos se olhavam sem entender de onde vinha a voz. Era um rapaz negro, com semblante de ódio e uma carteira em punho diante das câmeras. "Por que você não fala, policial, que pediu mil reais pro meu irmão e só quando não recebeu forjou a droga?! Pois saiba que isso tudo foi filmado. Tá aqui nesse celular!", denunciou.

         A imitação de jornalista que apresentava o Balanço pediu pra cortar. O delegado imediatamente pegou Guto pelos braços e o convidou para conversar. O jovem de repente olhou para o que estava fazendo e hesitou. Flashes e luzes de LED, microfones, perguntas, tudo aquilo ao mesmo tempo. Então de repente não pareceu ruim sair dali. Ao abrir a porta da sala do diretor, havia uma moça loira sentada diante de uma TV ligada na Record ao fundo. "Sente aqui. Vou despachar a imprensa e já conversamos", avisou Ícaro. As duas mãos pretas à cabeça, olhos lacrimejantes e nó na garganta. Nesse instante, eis que uma mão branca o toca. "Se você tivesse feito isso com minha mãe eu teria gostado", disse Yasmin. Ele levantou. Procurou palavras e encontrou um abraço. "Tá tudo bem".

         Os jornalistas foram informados pela produção de que a denúncia do garoto não seria veiculada. "Esse policial só passa coisa bacana pra gente", justificaram a maioria dos editores. Foram embora logo em seguida. O delegado mandou soltar todo mundo. "Isso aqui não é uma seccional. Nunca mais chame a imprensa sem antes falar comigo. Não vou prosseguir na denúncia, mas se algo acontecer à família desses jovens aqui, ou a eles, eu guardarei a gravação do celular do denunciante pra garantir que vou atrás de você", avisou o delegado. O cabo engoliu a seco.

         Enquanto isso, na sala do diretor, o abraço continuava. "Você está melhor?", perguntou Yasmin. "Não. Agora estou com outro problema", respondeu. "Qual?!", perguntou ela se afastando para encará-lo. "Você falou com a sua boca perto da minha. Senti o calor dela. Agora só vou ficar bem se prová-la", desabafou. "Você é cínico. Mas eu não estou aqui pra ajudar?", sussurrou. Os lábios grossos dele se misturaram aos lábios finos e rosados dela. Línguas ensopadas se misturavam quando o delegado interrompeu. "Obrigado por cuidar dele, Yasmin", descontraiu. Yasmin fazia pesquisa de campo sobre mediações de conflitos em delegacias especializadas. Saiu de lá com um bom exemplo pra pesquisa.

PRÓLOGO


         Ela deixou Guto e o irmão na Cabanagem. Sentiu medo quando viu toda força expressiva da periferia. Depois de três meses de namoro já conseguia ver aquilo como lugar de gente. Mas o namorado nunca ia ao prédio dela. Nem quando a velha da mãe dela não estava. Até que um dia ela teve uma ideia. Ligou alegando que estava só e passando mal. Ele teve de ir. De madrugada. Ela pagaria o táxi. Ela o esperava de camisola próximo ao elevador de serviço enquanto a essa altura o porteiro pensava qual conta pagaria com a grana que recebeu pra desligar as câmeras de segurança. "Não vai entrar ninguém aqui?", perguntou ele, excitado e assustado ao mesmo tempo. "Não. O elevador de serviço só é usado em horário comercial", disse ela. "O trauma dele passou depois disso", contou ela a uma amiga dois anos depois do fim daquele namoro.