Enquanto
a santidade de um beijo molhado casual, a caridade de uma noitada numa boate
com as amigas e/ou a fé num mundo melhor e possível forem assuntos conversados
sem filtros apenas ao lado de fora da igreja, dificilmente conseguiremos
aceitar plenamente a dimensão da espiritualidade que habita/ emana das
juventudes. Por mais que alguns organismos teimem em atrair jovens para um
curral onde velhos discursos possam ganhar o verniz de novas gírias, em algum
momento as cercas serão puladas, quiçá quebradas por eleas/es, por mais que nem
toda novidade seja “louvável” para quem perderá alguma coisa com a
mudança.
A Boa
Nova cristã vive um desafio perigoso desde a sua gênese: ela incomoda os
poderosos. A jovem Maria sabia disso, pois segundo a comunidade de Lucas (Lc
1,52), ao carregar “A novidade” no ventre ela cantou que “Ele (...) derruba do
trono os poderosos e eleva os humildes”. Ao mesmo tempo, segundo a comunidade
de João (Jô, 1-11), o primeiro milagre de Jesus garantiu que a festa, a alegria
e a bebida de alguns adoráveis bêbados não acabasse, e transformou a água da
purificação em vinho. É como se Jesus transformasse água benta em cachaça, no
primeiro grande símbolo nesse evangelho de que o Messias era Deus em forma de
homem, vivendo isso até as últimas consequências; o Divino que adiante
sangraria pelo bem dos homens e das mulheres.
Talvez
não seja exagero pensar que hoje algumas pessoas realizam o trabalho de
evangelização das juventudes trilhando o caminho inverso. São vinhos que são
convidados a serem transformados em água, alegria que precisa ser desfigurada
em respeito, sexualidade que precisa ser reduzida a pecado, ousadia que precisa
ser regredida ao status de desobediência. Mas isso apenas no nível do discurso
oficial, de algumas publicações talvez, porque na prática o “Espírito sopra
onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde vem, nem pra onde vai” (Jô
3, 8). Quem sabe as juventudes ainda sejam aquele garotinho, “perdido” dos pais
dentro de um templo, evangelizando quem acha que sabe mais do que ele (Lc 2,
41-51).
Quantas/os
de nós, no trabalho com jovens sabemos enxergar que até dois pães e três
peixinhos de um rapaz ou de uma moça são suficientes para alimentar uma
multidão faminta (Jo 5, 5-15)? Quantos de nós não somos os irmãos mais
velhos daquele filho mais jovem e mais amado pelo pai, que por inveja o
atiramos no poço e o declaramos morto, ou pior, o vendemos por qualquer preço?;
ou mesmo não somos aquele irmão mais velho que se acha mais merecedor do abraço
do Pai do que o irmão todo errado, como aquela jovem que engravida
precocemente, seja o adolescente apreendido e exibido ao vivo nos telejornais, seja
aquela menina rotulada como alguém que não tem nada na cabeça?
Querer o
certo ao errado, aliás, é o maniqueísmo no qual caímos em tentação todas as
vezes que não compreendemos que as juventudes precisam construir com as
próprias mãos e sob auxílio dos mais velhos um caminho. O fetiche das multidões
e grandes eventos tem sido o grande inimigo do processo no qual a/o jovem
precisa amadurecer em todas as dimensões de sua própria existência, e não
apenas ser mais um número. Não estaríamos querendo que os jovens apenas digam
“Eis-me aqui”, ao invés de apresentar o desafio de um “caminho aberto”?
Já pensou
se a pedagogia de Jesus Cristo fosse baseada apenas em fórmulas de fácil
solução, como declarar a fé incondicional, só cantar coisas de Jesus e jamais
desobedecer? Tadinho do São Pedro. Seria excomungado quando duvidou que atirar
de novo as redes ao mar depois já ter tentado tanto daria resultado; seria
convidado ao confessionário por ser um homem de pouca fé e não andar sobre as
águas quando chamado; poderia ser preso ao cortar as orelhas do soldado que
prendia o Mestre ou seria chamado de herege por negar Jesus no momento mais
difícil. Mas foi esse “homem de pouca fé” que ganhou a honra de chefiar a
igreja, de repente porque Jesus conseguia enxergar como poucos que os defeitos expostos não são necessariamente piores do que os ocultos.
Temos
jovens nas periferias, no campo, nas obras, nas bocas de fumo, na cadeia,
dentro do templo, num abrigo esperando adoção, na rua esperando esmola ou no
seu quarto esperando um novo videogame. E temos ao redor deles uma sociedade e
uma igreja adultocêntricas que se enamoram da beleza e a energia jovial dessas
juventudes, e que gastam grande parte do tempo construindo fôrmas para elas. E
para quê? Será possível construir um caminho para as/os jovens sem ter a
frente disso elas/es próprias/os?
É
interessante ver que de lugares onde a opressão do racismo histórico imperavam
surgiu através das mãos dos jovens o Blues, o Roquenrol, o samba, o funk
carioca, o hip-hop, o tecnobrega, o manguebeat, o cordel, o forró, os solos de
Hendrix, alguns dos atletas mais maravilhosos da história, como Jordan, Bolt,
Pelé e Cia. E se o Espírito falou através de Maria que Jesus viria para elevar
os fracos e destronar poderosos, como não dizer que tudo isso é fruto do
Espírito de jovens ousados apesar de tudo? Os sacerdotes e levitas
de hoje deveriam voltar de onde acham que devem ir e aprender com a sabedoria
desses samaritanos (Lc 10, 30-37), todos eles mais próximos dos jovens do que
muitos sermões e pregações.
Como o
padre Hilário Dick costuma dizer, “A juventude é o sacramento da novidade”.
Essa espiritualidade renovadora e, por que não dizer, transgressora, brota de
quem tiramos o alimento que parece pouco, mas suficiente para alimentar
milhares de famintos; é o que ajuda a sobreviver os que são atirados no poço e
ainda assim aceitam o desafio de entender os sonhos dos outros; é quem dá
coragem para quem diz um sim conseqüente, independente do perigo; é o que ilumina
aquela/e que erra pra caramba, mas que no fundo quer muito acertar.
A
espiritualidade das juventudes, portanto, é o impulso fundamental da novidade,
o novo que precisamos, mas nem sempre aceitamos. Querer a juventude em suas
baias e não aceitar a novidade que ela trás é um contrassenso, é o mesmo que
dizer amar o Jesus loiro, de olhos azuis, o da misericórdia e que não chama
palavrão, e negar que ele também foi desobediente, transgressor, e
revolucionário a ponto de desagradar todas as elites da época e sofrer as
consequências disso. Da mesma forma, não adianta fazer o discurso de que aceita
a renovação e não querer correr o risco de modificar o que aparentemente é
puro, ou sem dar voz para falar o que pensam aqueles que de alguma maneira
louvam. Ou gritam.
5 comentários:
sensacional! um tratado e tanto querido ... só me resta compartilhar ...
Extraordinário, como não ler algo assim e sentir que seu pensamento foi traduzido. Excelente amor, você é a mente que traduz a minha.
Muito bom seu texto! Até já tinha pensado nesse assunto, mas você colocou de forma escrita de maneira sensacional.
Beijocas
Perfeito. Assino embaixo.
Muito obrigado pelo carinho, Paulo, Franci, Dama e Douglas.
Abraços!
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