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Mami e eu. Foto de Celso Rodrigues |
Era um fim de tarde típico de Belém. Minha irmã Iaiá, nossa amiga
Jaci e eu devolveríamos uns filmes à locadora que ficava no subsolo do shopping
Castanheira, próximo de casa. Um centro comercial luxuoso rodeado de periferias,
inclusive o bairro onde cresci. Pra nós qualquer rua asfaltada parecia praça,
quem dirá um lugar como aquele. Lembro de ter ido muitas vezes até lá com os
colegas só pra brincar de se esconder, ou simplesmente pra andar por ali,
pois tudo era muito caro, e quase não tínhamos como comprar nada. Naquele
dia não foi diferente. Após devolvermos os VHSs fomos caminhar, viver naquele espaço nosso
momento de lazer.
Entramos na loja Yamada, que é bem popular, e nisso encontramos um pacote
de chocolate mm largado sobre uma prateleira da sessão de móveis. Estava
aberto. Alguém comprou e esqueceu ali. Ficamos alguns minutos nos perguntando se pegaríamos ou não.
Jaci insistiu que deveríamos. Pegamos. Fomos pegos em seguida. Um homem
engravatado nos segurou pelo braço e nos levou
a um corredor próximo dali. Com outros clientes nos olhando, como se fôssemos
marginais, fomos interrogados. Tratados como ladrões. “Nós temos filmagens de vocês roubando isso”,
falava o engomado. “Então pega lá a filmagem”, desafiei. O homem me olhou feio
e exigiu que eu não me rebarbasse. O chicote doeu no meu coro. Me calei.
Hoje, pensando melhor, sei bem. Eles perceberam que não roubamos.
Aquela loja não vendia chocolate, nem qualquer coisa que não fossem artigos de
magazine. Ele ameaçou ir com a polícia na porta de casa se não trouxéssemos
dinheiro no dia seguinte. Disse que aquele bombom custava o que hoje equivaleria a 20 conto.
Tivemos de raspar todas as nossas economias pra "pagar" aquela quantia sem nossos pais saberem. Foi a
primeira vez que percebi uma coisa: tenho cara de ladrão. Depois, inclusive
como repórter, muitas vezes quiseram me prender junto com os caras que
entrevistava. Ir trabalhar sem crachá era ruim. Ninguém acreditava que alguém
como uma cara como a minha pudesse ser jornalista
Em 2011 fui à Espanha. Parei num orelhão de Madri pra falar
com o povo de casa. Um homem veio. Me olhou de cima a baixo. Achei que era gay.
Continuei. Outro veio. Me olhou mais ainda. Comecei a ficar preocupado.
Continuei falando, mas agora me esforçando pra não transmitir preocupação ao outro lado
da linha – minha mãe morreria. Quando me olhou o terceiro avisei que precisava
desligar. Minhas pernas já estavam trêmulas. Estava longe da minha comitiva. E
sabia qual olhar era aquele. Após desligar veio um guarda. Me pediu
desculpas pelos olhares. Disse que ali perto anos antes haviam explodido uma estação
de metrô. Dessa vez me confundiram foi com terrorista mesmo.
Tenho essa cara de ladrão não pelo sangue de descendente de
portugueses oriundo de papai, mas pelo sangue africano da minha mãe.
Eu sou descendente de escravos. Sou preto. Historicamente preto, de beiço
grande e cabelo crespo. Da periferia ocupada por ex-escravos. Libertos sem
qualquer direito à dignidade. Minha pele não tem tanta melanina e alguns me confundem com branco. Mas branco não tem cara de ladrão. Eu tenho. Sou um jornalista com
cara de ladrão. As pessoas se acham inteligentes quando rotulam as pessoas assim. Eu nunca roubei. Nunca matei. Sou trabalhador. E tenho cara de ladrão. E seu racismo com isso?
8 comentários:
O Brasil é racista, o mundo é racista, o homem é racista ... lamentável ...
Lamento por ter passado por isso. Mas o que realmente importa é o que está no coração das pessoas que lhe conhecem, das que não tme preconceito e não julgam e, acima de tudo o que há em seu coração.
Muito bom!!!!
Belo e visceral texto. Me emociona e orgulha ver futuro em jovens como você, negro, combativo, ótima narrativa. Quisera ser um conto. Me tenha em sua., em nossa luta diária! <3
Belo texto gostei... infelismente vivemos em uma sociedade que só liga para aparencia e não para o que realmente somos... Ariane
- Lamentável e revoltante, Bratz!
- Eu aprendi a canalizar essas experiências pro bem, caro Sérgio. Luto para que ninguém mais precise viver essa situação sem sentimento de impunidade.
- Obrigado, irmão Adison.
- Muito bom contar com você e tudo o que você significa pro movimento popular brasileiro, Kellen. Vamo que vamo!
- Obrigado, Ariane!
Não conhecia o teu texto. Gostei muito! Sucesso sempre, Eraldo.
Beijos.
Como sempre arrebentando!
Eu acho você bonitinho...kkk
Dá uma passadinho no batom vez ou outra.
bj
Ro
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