“Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino”
(Baby do Brasil, Didi Gomes, Pepeu Gomes)
Não faz muito tempo eu soube de uma confusão armada por uma mulher na escola de educação infantil onde o filho dela estudava o
maternal. Era a festa de aniversário de uma coleguinha, que levou bolos, doces
e balões para celebrar o dia dela com a turma. Ela não levou balões
azuis, apenas cor de rosa, e o filho dessa dita mulher quis levar uma bexiga para casa assim mesmo
(apesar da cor). A babá foi buscar o garoto, que quando chegou ao lar, todo
alegre, com o balão na mão, viu sem entender a mãe se revoltar e voltar na
mesma hora à escola para tomar
satisfações. O barraco só não foi pior porque as crianças já tinham ido embora.
Ao voltar para casa, a raiva se voltou ao filho e depois de ter dito que aquela cor não era coisa de macho, ela certamente deve ter dito "homem que
é homem não chora", ao ver o filho
aos prantos.
Poderia dizer que é assim que as pessoas começam a
se tornar machistas, mas na verdade não é. O buraco é mais embaixo, ou melhor,
mais antigo. A opressão de gênero tem início no mesmo período em que o homem
começou a dominar técnicas para literalmente se apossar dos territórios e se
iludir ser dono de onde (e de quem) pisa. Através da
força, o menino subjuga quem não tem a mesma força física ou não é “detentor”
dos mesmos bens, e entre as vítimas principais estão, sobretudo, as meninas.
Antes dos garotinhos começarem a brincar de oprimir
e cometer genocídios nefastos para provarem a si e aos outros que são grandes,
quando a humanidade sobrevivia da coleta, a solidariedade aferia mais
grandiosidade às praticas das pessoas. Nesse período, não por acaso, a figura
feminina era endeusada. Mas não era um poder de cima para baixo, e sim uma
relação circular de poder, horizontal, de quem prefere olhar ao outro e à outra
a mesma altura, e não com a cabeça inclinada para baixo.
E se o branco é superior ao negro, tudo que vem do
negro é pecado, criminoso ou feio; se o ariano é superior ao judeu, todo judeu
merece sofrer o que o ariano quiser; se sulista é melhor que o povo do
norte-nordeste, tudo que vem da parte de cima do mapa é coisa de pobre, mal
educado, de quem não sabe votar, desse povinho disposto a invadir a minha terra
me roubar. Ou seja, a mesma lógica vale para o homem em relação à mulher. Numa
sociedade patriarcal, tudo aquilo que é atribuído à mulher é inferior,
merecedor de chacotas e indigno dos seres superiores: os meninos. Na verdade, isso
tem até um nome: Misoginia, ou seja,
ódio a tudo que vem do lado feminino da vida.
Já se perguntaram por que as meninas usam calça e
os meninos não podem usar saia? Já se questionaram por que a mulher diz que a
outra mulher é bonita e os meninos não podem? Já se intrigaram com o fato de
que menina chegando com balão azul em casa não dá confusão, mas os meninos não
podem? Já se inquietaram com o fato do homem gostar de ver mulher pegando mulher, mas não o é assistir a
homem fazendo enxerimento com homem? Está tudo interligado. Tudo
relacionado ao feminino é tolerável nas mulheres, ainda que considerado inferior,
mas, homem traindo a dita superioridade herdada de Deus é inconcebível.
Por isso gays , travestis e transexuais são os maiores alvos dos
homofóbicos violentos em relação a lésbicas.
Na verdade, como diz a feminista e teóloga biblista Tea Frigério, o
patriarcado não fez mal somente a mulheres. Fez mal também ao homem, que negou
o lado feminino que todos nós possuímos. Ao homem restou o papel de ser frio,
calculista, o que não chora, e à mulher foi colocado o papel de ser mãe,
tolerante, a do sim, que não arrota, não peida, e tem de sempre ser linda aos padrões eurocêntricos;
sendo que isso tudo é apenas uma capa, pois todos nós somos dotados de ternura
e força, sensibilidade e ousadia, carinho e agressividade.
Então o
homem mesmo se colocou nessa prisão de não poder demonstrar carinho, sobretudo
para com outro homem, nem sensibilidade demais, sob o risco de parecer gay. Ou
melhor, de demonstrar que possui algo daquele ser “inferior” do outro sexo. Portanto,
aceitar que há uma menina em todo menino pode sim começar a provocar novas
relações de poder, uma outra visão de mundo onde a diversidade e a tolerância podem ser acolhidas com um doce
abraço de menina e (até que não reprimam) de menino também. É preciso entender que um balão rosa é mais recomendável aos
meninos do que reproduzir as práticas milenares do patriarcado opressor.