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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Milagre na JMJ 2013 - Uma mijada, um martírio


Nove graus na praia de Copacabana e meu corpo amazônida lá, brigando com a temperatura durante a vigília com o Papa Francisco. Desde que o calor começou a sumir vertiginosamente era em minha bexiga onde se concentrava a mais ardente zona de combate. Não havia banheiro suficiente graças a Eduardo Paes, e o jeito foi mijar no mar. Que bonita era aquela curva provocada pelo vento no líquido que deliciosamente saía de mim quando de repente uma onda desgraçada veio mais forte do que deveria. Eu consegui me equilibrar em pé, e ainda tinha muito a expelir quando a onda finalmente se foi e me deixou as calças encharcadas. Pelo menos eu estava com frio demais para sentir qualquer constrangimento pelas risadas. Só de bermuda, naquela praia de agasalhos, eu me deitei pra ouvir a juventude dar testemunho ao sumo pontífice.
Começou um após outro jovem branquinho e fresquinho a falar mensagens tão emocionantes quanto o roteiro de um filme piegas pode ser. O povo fazia sinal da cruz, se ajoelhava, aplaudia, eu só conseguia ouvir baboseiras inúteis como “eu sou virgem”, “eu não uso mais drogas”, “fui a cinco jornadas”, e por aí vai. Tentei dormir pra ver se a coisa ficava menos pior. Me embrulhei no cobertor mais grosso disponível e o vento gelado parecia rir de mim. A essa altura não sei se tremia de frio ou de raiva pelos aplausos homenageando as porcarias que aqueles jovens com alma de velhos falavam.

Me levantei. Puto. Como a desorganização da JMJ 2013 fez com que a vigília fosse realizada em local sem a menor estrutura, não havia demarcação de corredores, assim a galera foi se apropriando do lugar. E enquanto o Papa estava no palco travestido de altar era impossível passar, porque ninguém queria sujar de areinha os colchões. Eu saí invadindo, ou melhor, ocupando terreno a terreno. Pulando cercas de areia, e quando em espanhol, inglês ou mongol alguém reclamava de invasão de "propriedade", eu dizia que estava sendo chamado pelo Espírito Santo. Peguei um atalho pela beira do mar, que depois de me molhar parecia satisfeito e se manteve distante. Cheguei ao palco, mas alguns seguranças me impediam de entrar. Então ameacei dar porrada num dos jovens quase catatônicos a ouvir aqueles malditos testemunhos, e num olé homérico ao guarda corri para dentro.

Não sei quantas mãos me puxaram, nem quantas pernas me chutaram. O fato é que eu subi lá naquele palco que mudava de cor, e era maior de perto do que parecia pelo telão. O papa não aparentava medo, mas o jovem falando compassadamente com aquele ar de “renovado” começou a tremer. Deve ter sido por causa da minha cara de pivete. “Perdeu, playboy. Passa o microfone”, gritei com a mão por dentro da blusa. “Boa noite, galera! Vim aqui dar meu testemunho”, gritei eu competindo com uma enorme microfonia. Os seguranças já se armavam para me bater, a guarda nacional se preparava pra atirar e o povo já fazia biquinho pra vaiar quando Francisco levantou a mão direita. Em espanhol disse alguma coisa parecida com “calem a boca, pois quero ouvir esse jovem”. Eu quase choro com a emoção de não apanhar nem morrer, mas juntei minhas forças.

Foi esse o meu discurso:

Eu sou um pivete, um pichador de muro. Um negro que passou uma temporada no presídio antes de finalmente ser exterminado. Sou um camponês oriundo de minha cidade com terra e cerca demais e justiça de menos, com vontade desesperada de sobreviver. Sou gay desde de nascença, humilhado desde que me entendi, e mentiroso desde após a crisma para poder continuar na igreja. Eu fumo maconha todos os dias, e ela não me faz mal. Não faz porque foi na igreja que experimentei pela primeira vez. Nela descobri o que há de mais podre e mais santo, e foi através dela que enxerguei sentido à minha vida de opressão. Percebi como a droga do capitalismo e a mentira do consumismo são os únicos entorpecentes a serem criminalizados.

Eu faço sexo todo dia com minha namorada. E sempre foi ótimo, olha. Vocês aí que ainda são virgens, recomendo muito. Qualquer dúvida perguntem a algum padre, porque eles também fazem sexo sempre que podem. E antes de começarem a vaiar e jogar pedras, gostaria de perguntar uma coisa a vocês. O tempo que vocês ficam batendo punheta, se enganando que vão pro céu por não chamar palavrão, por que vocês não se dedicam a uma missão mais interessante? Só nesses minutos no qual discurso pelo menos um jovem foi executado no Brasil. Somos uma multidão de três milhões de pessoas num local escroto, sem banheiro e sem condições, um exemplo do que esse povo carioca e esse povo brasileiro passa diariamente por conta da má fé desses governantes filhos da puta.

Querem sentir o Espírito Santo? Então vamos agora marchar até a prefeitura, arrebentar os portões como Jesus arrebentou as barracas dos mercadores do templo. Ocupar e fazer vigília lá, e dizer que só desocuparemos quando o prefeito renunciar, uma nova eleição for marcada e prometeremos que voltaremos a ocupar aquele lugar se os candidatos forem mais do mesmo. Vamos deixar um grande exemplo pras juventudes do Brasil e do mundo e mostrar que só rezar por um mundo melhor não é suficiente. Quis Deus que a JMJ ocorresse em Madri quando os indignados foram às ruas, e agora no Brasil quando o povo bradou um mundo novo. Isso sim é um sinal, não uma dor de cabeça que passa ou um bissexual que casa com mulher e mente dizendo que deixou de ser gay.

Como querem ir pro céu sem antes ir viverem aqui na terra a santa experiência de irem à luta...

Não posso dizer se o Papa aplaudiu. Se o povo que estava paralisado se mexeu, se os que estavam cegos enxergaram ou se os mudos finalmente falaram. Eu morri antes de ver, mas pelo menos vivi antes do fim.

terça-feira, 23 de julho de 2013

ESPIRITUALIDADE DAS JUVENTUDES - Transformar água em vinho

Enquanto a santidade de um beijo molhado casual, a caridade de uma noitada numa boate com as amigas e/ou a fé num mundo melhor e possível forem assuntos conversados sem filtros apenas ao lado de fora da igreja, dificilmente conseguiremos aceitar plenamente a dimensão da espiritualidade que habita/ emana das juventudes. Por mais que alguns organismos teimem em atrair jovens para um curral onde velhos discursos possam ganhar o verniz de novas gírias, em algum momento as cercas serão puladas, quiçá quebradas por eleas/es, por mais que nem toda novidade seja “louvável” para quem perderá alguma coisa com a mudança. 

A Boa Nova cristã vive um desafio perigoso desde a sua gênese: ela incomoda os poderosos. A jovem Maria sabia disso, pois segundo a comunidade de Lucas (Lc 1,52), ao carregar “A novidade” no ventre ela cantou que “Ele (...) derruba do trono os poderosos e eleva os humildes”. Ao mesmo tempo, segundo a comunidade de João (Jô, 1-11), o primeiro milagre de Jesus garantiu que a festa, a alegria e a bebida de alguns adoráveis bêbados não acabasse, e transformou a água da purificação em vinho. É como se Jesus transformasse água benta em cachaça, no primeiro grande símbolo nesse evangelho de que o Messias era Deus em forma de homem, vivendo isso até as últimas consequências; o Divino que adiante sangraria pelo bem dos homens e das mulheres.

Talvez não seja exagero pensar que hoje algumas pessoas realizam o trabalho de evangelização das juventudes trilhando o caminho inverso. São vinhos que são convidados a serem transformados em água, alegria que precisa ser desfigurada em respeito, sexualidade que precisa ser reduzida a pecado, ousadia que precisa ser regredida ao status de desobediência. Mas isso apenas no nível do discurso oficial, de algumas publicações talvez, porque na prática o “Espírito sopra onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde vem, nem pra onde vai” (Jô 3, 8). Quem sabe as juventudes ainda sejam aquele garotinho, “perdido” dos pais dentro de um templo, evangelizando quem acha que sabe mais do que ele (Lc 2, 41-51).

Quantas/os de nós, no trabalho com jovens sabemos enxergar que até dois pães e três peixinhos de um rapaz ou de uma moça são suficientes para alimentar uma multidão faminta (Jo 5, 5-15)?  Quantos de nós não somos os irmãos mais velhos daquele filho mais jovem e mais amado pelo pai, que por inveja o atiramos no poço e o declaramos morto, ou pior, o vendemos por qualquer preço?; ou mesmo não somos aquele irmão mais velho que se acha mais merecedor do abraço do Pai do que o irmão todo errado, como aquela jovem que engravida precocemente, seja o adolescente apreendido e exibido ao vivo nos telejornais, seja aquela menina rotulada como alguém que não tem nada na cabeça?

Querer o certo ao errado, aliás, é o maniqueísmo no qual caímos em tentação todas as vezes que não compreendemos que as juventudes precisam construir com as próprias mãos e sob auxílio dos mais velhos um caminho. O fetiche das multidões e grandes eventos tem sido o grande inimigo do processo no qual a/o jovem precisa amadurecer em todas as dimensões de sua própria existência, e não apenas ser mais um número. Não estaríamos querendo que os jovens apenas digam “Eis-me aqui”, ao invés de apresentar o desafio de um “caminho aberto”?

Já pensou se a pedagogia de Jesus Cristo fosse baseada apenas em fórmulas de fácil solução, como declarar a fé incondicional, só cantar coisas de Jesus e jamais desobedecer? Tadinho do São Pedro. Seria excomungado quando duvidou que atirar de novo as redes ao mar depois já ter tentado tanto daria resultado; seria convidado ao confessionário por ser um homem de pouca fé e não andar sobre as águas quando chamado; poderia ser preso ao cortar as orelhas do soldado que prendia o Mestre ou seria chamado de herege por negar Jesus no momento mais difícil. Mas foi esse “homem de pouca fé” que ganhou a honra de chefiar a igreja, de repente porque Jesus conseguia enxergar como poucos que os defeitos expostos não são necessariamente piores do que os ocultos.

Temos jovens nas periferias, no campo, nas obras, nas bocas de fumo, na cadeia, dentro do templo, num abrigo esperando adoção, na rua esperando esmola ou no seu quarto esperando um novo videogame. E temos ao redor deles uma sociedade e uma igreja adultocêntricas que se enamoram da beleza e a energia jovial dessas juventudes, e que gastam grande parte do tempo construindo fôrmas para elas. E para quê? Será possível construir um caminho para as/os jovens sem ter a frente disso elas/es próprias/os?

É interessante ver que de lugares onde a opressão do racismo histórico imperavam surgiu através das mãos dos jovens o Blues, o Roquenrol, o samba, o funk carioca, o hip-hop, o tecnobrega, o manguebeat, o cordel, o forró, os solos de Hendrix, alguns dos atletas mais maravilhosos da história, como Jordan, Bolt, Pelé e Cia. E se o Espírito falou através de Maria que Jesus viria para elevar os fracos e destronar poderosos, como não dizer que tudo isso é fruto do Espírito de jovens ousados apesar de tudo? Os sacerdotes e levitas de hoje deveriam voltar de onde acham que devem ir e aprender com a sabedoria desses samaritanos (Lc 10, 30-37), todos eles mais próximos dos jovens do que muitos sermões e pregações.

Como o padre Hilário Dick costuma dizer, “A juventude é o sacramento da novidade”. Essa espiritualidade renovadora e, por que não dizer, transgressora, brota de quem tiramos o alimento que parece pouco, mas suficiente para alimentar milhares de famintos; é o que ajuda a sobreviver os que são atirados no poço e ainda assim aceitam o desafio de entender os sonhos dos outros; é quem dá coragem para quem diz um sim conseqüente, independente do perigo; é o que ilumina aquela/e que erra pra caramba, mas que no fundo quer muito acertar.

A espiritualidade das juventudes, portanto, é o impulso fundamental da novidade, o novo que precisamos, mas nem sempre aceitamos. Querer a juventude em suas baias e não aceitar a novidade que ela trás é um contrassenso, é o mesmo que dizer amar o Jesus loiro, de olhos azuis, o da misericórdia e que não chama palavrão, e negar que ele também foi desobediente, transgressor, e revolucionário a ponto de desagradar todas as elites da época e sofrer as consequências disso. Da mesma forma, não adianta fazer o discurso de que aceita a renovação e não querer correr o risco de modificar o que aparentemente é puro, ou sem dar voz para falar o que pensam aqueles que de alguma maneira louvam. Ou gritam.