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segunda-feira, 30 de junho de 2014

ÚLTIMA PAULINISSE - Derradeira parte de um mosaico inacabado

Este blog nunca vai sair do ar, se depender de mim, mas não mais postarei textos novos aqui, salvo na hipótese de eu conseguir publicar um livro com algumas das postagens contidas neste cantinho que há cinco anos é minha válvula de escape para o infinito. Não lembrava, mas quando criei este espaço, na primeira postagem eu disse que ele a realização de uma meta pessoal estabelecida no final do ano anterior. Eu descontinuo as postagens mais ou menos pelo mesmo motivo. Tenho vontade de publicar algo em papel e nada melhor para começar essa vida do que aproveitar o que já produzi.

Foram cerca de 71 mil visualizações nessa meia década. Não significa que cada pessoa que abriu o blog leu um texto todo (tão pouco se gostou), mas é alguma coisinha. Quando eu tinha tempo e disposição pra ser um blogueiro mais ativo eu consegui uma média de 3 mil visualizações/ mês e encerro com menos de um terço disso, um dos motivos pelos quais tomei essa decisão de parar. Se eu não tenho como alimentar regularmente nem como divulgá-lo como se deve, vou continuar publicando aqui pra quê? Se eu quisesse escrever só pra mim e meus amigos mandaria os textos por email ou registraria só no meu PC. Óbvio que criei blog pra que muitas pessoas leiam as porcarias que escrevo.

Eu paro de postar, mas não o tirarei do ar.  Aqui eu expus as minhas entranhas, minhas confidências mais profundas, e minhas loucuras mais desnudas. Também conquistei verdadeiras amizades no mundão da blogsfera. Por isso, enquanto o blogspot existir esse canto existirá.Em breve, além de tentar publicar alguns desses textos pretendo criar um blog só pra contos eróticos e blogar crônicas no site da organização onde trabalho. Darei um jeito de colocar nesse próprio post aqui no futuro os links para vocês conferirem. Também tenho em mente alguns argumentos para romances. "Vamu vê" no que dá.

SOBRE O TÍTULO E PROCESSOS
Como falei em algum post da vida, “Eraldo e suas paulinisses” é um neologismo que brinca com meu nome composto. É legal que o “paulinisse” desobedeça a norma gramatical. Se fosse seguir a “ordem” seria “paulinice”, mas a este cafofo literário aqui jamais quis se enquadrar em regra alguma e enquanto laboratório contém muitos erros de ensaio. Quando re-leio sempre edito uma coisa aqui e outra ali, mas ainda há muitas falhas de concordância, de ortografia, inadequações estéticas. Contudo, como valorizo processos, esses registros com "erros" não me são motivo de vergonha, e sim prova de que a gente muda o tempo todo e às vezes consegue aprender algo. E se noto equívocos é porque alguma coisa assimilei dessa maldita arte de escrever.

Aqui estão registrados textos, inclusive, muito ruins, outros bons, outros "marromenu", ou seja, fica muito do pior e do melhor de mim. Jamais abandonarei minhas Paulinisses e nem deixarei de ser um mosaico de eus, porque pra mim isso é muito mais que um título e um subtítulo. É princípio. Ninguém é a mesma coisa sempre e deixamos uma assinatura particular em cada um de nossos gestos. Esse blog me ajudou a aprender a sobreviver nesse mundo através da escrita. Pretendo continuar fazendo isso de leso que sou.

Aqui uma pequena seleção nos meus textos prediletos dos principais Eus deste mosaico:





Eu Romântico: Twittando

Eu Existencialista: Mosaico de eus em debate



Eu Religioso: Círio de Lucidez

Eu Poeta: Mel e Limão




quinta-feira, 26 de junho de 2014

O FanTáSTicO mUnDO de PeDRo

Fotografia do Pedro feita por Thiago Araújo
É um menino diante de mim, até as palavras mágicas "Bora brincar?" com a voz mais gostosa do mundo. Depois disso ele é qualquer coisa, em qualquer lugar. O impossível brinca de ser. Pedro torna-se o bravo dragão guerreiro e eu um monstro com corpo de touro e rosto de cegonha. Lutamos. Bravamente. Aqueles outrora pequenos braços me acertam e empurram longe. Em seguida aqueles pés alguns segundos antes diminutos me chutam. Eu dou gritos de dor (essa é a ordem). Caio e imediatamente meu corpo vira pista de corrida para o carro pilotado por ele avançar. Cada contorno da minha perna vira um obstáculo, e derramando algumas gotas de saliva o motor ronca, os pneus cantam em freadas bruscas. O carro vai e volta. Já que estou mesmo deitado ele pega um cinto, envolve em meu pescoço. Súbito ele tem em mãos a rédea para controlar o dragão. Meus braços viram asas e sou obrigado a cuspir fogo contra os inimigos desafortunados que cruzam nosso caminho.  Minha barriga está pra cima, mas ela é a costa selada de um cavalo de fogo e o enredo oscilante, desatrelado de coesão e outras chatices lógicas são ditados pela boca sempre sorridente a decorar as mais diversas expressões de dar inveja a qualquer jogador de RPG. O cavalo aqui então corre, pula, para, anda bem devagar pra não chamar atenção, e até morre – com direito a choro e tudo. Enquanto estou nesse estado de “Bora brincar?” a realidade é como uma massa de modelar nas mãos do Pedro. Eu sempre canso antes dele, mas uma hora ele se entrega também. Deita no meu colo no único momento da brincadeira que me sinto invencível o suficiente para proteger o mocinho. Ele fecha os olhos quase sempre junto comigo. Enquanto sonho coisas desamarradas e anacrônicas chego perto do nível dele, finalmente. Até a hora de acordar, porque aí só um de nós faz isso plenamente. E não sou eu. Daí eu continuo levando minha vida normalmente, assim, imaginado o que viver. E ele vivendo o que imagina.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Sobre andar descalço

Ele se sentia oprimido com as sandálias e sufocado pelos sapatos. Gostava mesmo era de sentir os pedregulhos empurrarem pra cima a palma do pé, ter contato direto e sem intermediários com a perfeição dos defeitos do chão. Sentia-se mais honesto consigo mesmo pisando em algo sujo, quente ou macio e agradável do que pagar para fazer propaganda de calçados famosos.

Mas ele não podia. Os espinhos, o calor, a pobre sujeira, a santa higiene (salve salve), a boa educação, a ordem da mãe, as regras da empresa, tudo era motivo pra não andar descalço. Ele aceitou essas desculpas chuviscadas durante a vida toda, mas sempre dava um jeito de viver a própria liberdade sob si quando dava, quando não era convencionalmente proibido.

Certo dia ele voltava pra casa trilhando o mesmo caminho de sempre. Vinha pensando na vida, cabisbaixo, e reparou nos próprios passos, cada vez mais curtos. Não era mais a sandália que ele enxergava, mas sim amarras em seus calcanhares de pé a pé. Olhou ao lado, pro outro, pra frente, pra trás, olhou de novo e não conseguia mais enxergar calçadas e sim obediência. Correntes. Um pé atrás do outro. Cada pessoa puxava a outra e a outra puxava o um e por aí se ia.

Mas mesmo assim ele não conseguia se libertar a partir da própria base. Tinha vergonha desse negócio de fazer o que quisesse. Até que um dia, ao chegar da rua, deu um passo estranho. Era leve. Sentiu o mesmo peso dos pés de criança, quando procurava as pedras mais salientes indo rumo ao igarapé de Colares, de quando corria solto atrás de uma bola em campos de várzea, de quando lavava os pés e via naquela água suja escorrendo para o ralo todo o resumo do dia. Olhou pra baixo e viu a sandália arrebentada. Jogou ela e o outro par no lixo e ouviu o tintilar do metal quando elas chegaram ao fundo. Ele sorriu. Estava livre.

Desde então ele anda descalço pra onde precisa ir. Todos estranham, mas, se perguntam, diz simplesmente que a sandália arrebentou graças a Deus, ou que paga promessa, ou que tem trauma porque a mãe foi assassinada por um bandido fazendo-a engolir o próprio chinelo. Não precisava de razão para seguir a própria vontade, e sim das desculpas certas.  Quem não tinha intimidade suficiente pra perguntar estranhava não apenas aqueles pés imoralmente desnudos, mas também aquele olhar distante, meio autista e os sorrisos bobos do nada para o nada. Ninguém percebia como ele estava na verdade voando, como nos melhores sonhos de outrora. Com os pés no chão ele se conectava com todo o universo ao seu redor, principalmente com as coisas invisíveis e desimportantes.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Quando fui repórter de Polícia - parte 2


PAUTA SEDUTORA

Ela era linda. Magra, não mais alta que eu. Um rosto fino, lábios bem desenhados, charmosa de um olhar cinicamente provocante, mesmo naquele estado de medo e tensão. O fato de ser bandida só a deixava mais atraente. A pessoa a quem me refiro tinha acabado de ser apreendida junto a outra mulher quando reparei nela. Em parceria com mais três homens tiveram o assalto a uma loja de roupas frustrado pela polícia. Havia muita movimentação na Almirante, perseguição policial, gente querendo filmar, gente querendo ver. Gente querendo ver. Ah, e mais gente querendo ver. E eu não conseguia parar de olhar aquela menina de 17 anos deliciosamente algemada a minha frente.

Quando fomos à delegacia, a coisa só piorou. Ela percebeu que de toda multidão ali o único a não querer espancá-la era eu. Não sei se percebeu meu tesão, mas depois de apanhar, ser xingada e receber ameaças verbais, reparar um olhar nem que fosse de pena certamente faria ela buscar ajuda por ali. Vez ou outra me chamava baixinho pra perguntar algumas coisas ao pé do ouvido, ou pedir água, prendedor de cabelo ou coisas assim. Eu continuaria ajudando se ela não fosse tão gata, mas sendo do jeito que era eu não saía do alcance do olhar dela só pra ser chamado de novo.

Pra aumentar meu desespero, a garota havia guardado o próprio celular na calcinha. Sob a ordem do coronel uma PM também bonita colocou luvas e com a permissão da detida retirou o aparelho de “lá”. A moça, algemada com as mãos pra frente, apenas esticou a calça jeans lycra azul claro de coes baixo. Meu ângulo de visão permitiu que eu visse a calcinha e as evidências da depilação bem feita com a mão de outra mulher bonita enfiada “lá”. Era sensualidade demais, meu Deus. Tudo tão deliciosamente natural da parte da infant que à partir daí já não raciocinava direito com a cabeça de cima.

Depois daquilo eu não conseguia mais ser repórter, só um homem com tesão e um amigo solidário à violência a qual ela era irregular e vergonhosamente exposta. Desrespeito total aos Direitos Humanos. Compreendia o ódio das vítimas, mas nada justificava a violência policial. Quando um comandante da Polícia Militar percebeu que ela conversava comigo, chegou a me propor bater na cara dela. Ele realmente achou que eu queria. Recusei, óbvio. Além de ser uma covardia sem tamanho, preferiria estapear aquele rosto depois dela me pedir ofegante numa cama redonda, coberta por lençóis vermelhos ,desarrumados e melados de suor (não vou mentir).

Terminada a apuração voltei à redação pra escrever. Mas quem disse que consegui? E olha que tentei. Mas não deu. Levantei-me e voltei o mais rápido possível àquela delegacia que ficava próxima ao prédio do jornal. Pedi ao delegado permissão pra entrevistá-la numa sala fechada alegando precisar de um depoimento exclusivo. Se ele me permitira antes agredi-la, obviamente não havia razão para recusar. Eu não disse muita coisa depois de trancar a porta. Ela também não. “Eu não posso te livrar dessa prisão, mas posso te dar outra coisa agora. Você quer?”, disse enquanto encostava meu corpo no dela. Houve um beijo rápido, molhado e intenso. Depois, em silêncio e me fitando os olhos, ela simplesmente ajoelhou e me chupou. Deitou-se em seguida na mesa do investigador, e minha língua passeou por ela. Contivemos como deu nossos barulhos, pois de vez em quando alguém fazia ruídos do outro lado da porta. Não demoramos. Não podíamos. Não queríamos. Gozei olhando aquela boca linda aberta e com a língua pra fora pedindo leite. Terminada a punheta, saí aliviado do banheiro e escrevi uma matéria legal, com direito a página dupla e capa do jornal.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Sobre seca, cerca e orações*



Em qualquer livro de gramática, em qualquer aula sobre sujeito e predicado, as orações sem sujeito são exemplificadas com fenômenos da natureza, porque as ações contidas nestas não podem ser atribuídas a nenhum agente. Por exemplo: “Choveu no semiárido”. O verbo “chover”, como todos os fenômenos naturais, quando usados no sentido literal e não metafórico possuem um caráter impessoal.

Contudo, o ato de chover pode ser substantivo, principalmente em momentos de lamentação, como neste caso: “A chuva não veio”. E a precipitação de água também pode estar contida num outro tipo de oração, mas no sentido de prece: “Que Deus mande as chuvas esse ano para que não haja seca, tenhamos condições de beber água o ano inteiro sem sacrifício, isso melhore a agricultura e possamos ter pasto e bebida pros animais. Amém!”.

Mas, no que se refere à escassez d’água no semiárido brasileiro, chover sempre será parte de uma oração sem sujeito, pois a região com sua característica própria é mesmo um local onde se chove pouco. Se há sujeitos que causam grandes problemas durante a estiagem não são fenômenos da natureza, e a culpa não é das preces não atendidas. Os sujeitos culpados são os latifundiários, os governantes incompetentes e opressores ao longo da história. Jamais as chuvas ou a falta de fé, tadinhas.

O semiárido brasileiro possui a maior concentração de água desse tipo de bioma no mundo. São cerca de 37 bilhões de metros cúbicos estocados em cerca de 70 mil represas que garantiriam, em tese, recursos hídricos para todas as pessoas sem depender da chuva. Mas grande parte desses recursos estão em propriedades privadas e distantes do/a pequeno agricultor/a. Por isso não a seca, mas as cercas e a má distribuição ocasionam a escassez, principalmente para as famílias camponesas. É absurdo que em pleno século XXI o Brasil, atual 6ª economia do mundo, ainda não tenha conseguido vencer os desafios da estiagem, pois apesar do baixo investimento em pesquisa nesse país já há conhecimento científico suficiente para apresentar soluções eficientes a tal demanda. Bastariam para isso sujeitos determinados nos governos.

Culpar as chuvas, depender de preces foi tudo o que organizações como a Articulação no Semiárido (ASA), a Cáritas e outras deixaram de fazer quando passaram a propor tecnologias de armazenamento e produção alternativas para a convivência harmoniosa com tal bioma. Na maior seca dos últimos 40 anos na região - vivida de 2011 a 2013 - por exemplo, já se nota o resultado positivo com um número bastante reduzido de migração, ausência de grandes saques, e daquela típica imagem de retirantes, etc. Com estiagens bem menores os interiores viravam “cidades fantasmas”, as estações lotadas, e hoje o cenário é diferente, porque mudou em parte a forma como as pessoas se relacionam e acessam os recursos.

Portanto, “choverá amanhã” deve continuar sendo uma oração sujeito. Que nenhuma oração deixe de ser o ato de orar e agir; que nenhum sujeito composto (homens e mulheres, campo e cidade) teime em ser oculto diante dos desafios da política de recursos hídricos; nenhum sujeito simples seja vítima de sujeitos determinados e egoístas; que na gramática da vida "chuva" seja sinônimo de "direito" e não de "milagre".
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*Texto publicado originalmente na agenda do projeto Educação Contextualizada no Sertão Cearense, uma realização da Cáritas Diocesana de Crateús, com patrocínio da Petrobras. Versão editada.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Dom Alberto Ramos mandou prender seus padres


“A Santíssima Trindade decidiu visitar alguns lugares da querida Terra. Diz o Pai:
- Vou ao jardim do Éden, na Mesopotâmia, onda passei momentos muito felizes com Adão e Eva.
Diz o Filho:
- Vou à Galileia, onde passei momentos muito felizes quando era jovem.
Diz o Espírito Santo:
- Vou ao Vaticano, pois nunca lá estive.”
(Anedota de autoria desconhecida)

Nestes dias de lembrarmos 50 anos do golpe militar de 1964 um fato quase silenciado ao longo da história precisa ser lembrado.  Dom Alberto Ramos foi maior autoridade da igreja católica no Pará enquanto arcebispo de Belém no período de 1957 a 1990. Esta pessoa, conhecida por ser erudito, por ter participado da Academia Paraense de Letras, que empresta o nome a diversos locais públicos, mandou prender seus padres. Vou repetir: Dom Alberto Ramos mandou prender seus padres. No primeiro dia do novo regime ele pessoalmente anunciou na TV uma lista entregue por ele aos amigos militares contendo nomes de presbíteros ligados à chamada “esquerda católica”, considerados por ele “comunistas” ou com ligações "perigosas" com tal movimento. Um homem refém das falácias elitistas, vítima e culpado pela propagação de mensagens terroristas e rasas contra quem defendia maior justiça social na Amazônia e no mundo. Não se sabe até hoje qual a lista completa divulgada pelo arcebispo, mas nela certamente estavam os padres Diomar, Neno e Aloísio, então assessores da Ação Católica e presos graças às delações de seu superior.

Incentivados pelas encíclicas “Mater et Magister” e Pacem in Terris”, nas quais o papa conciliar João XXIII recomendava a relação com grupos ligados à luta por justiça (inclusive comunistas), padres, religiosos/as e leigos/as de todo Brasil agiam nas diversas organizações da Ação Católica da qual participaram importantes lideranças brasileiras, como o irmão do Henfil. A ideia era enxergar um Jesus Cristo transgressor, consciente e consequente politicamente, e crítico das injustiças como mensagem evangélica, e não um "Jesuzinho paz e amor", bonzinho, manso e despolitizado. Tal visão cristã tem como consequência o comprometimento radical com a vida, posição firme contra tudo que a denigre e opção preferencial pelos/as excluídos/as. No início da década de 60 os padres Neno, Diomar e Aloísio foram delatados pelo arcebispo por ter ligação com jovens atuantes. Um dos membros dessa igreja libertadora, Heraldo Maués, hoje considerado um dos maiores antropólogos da Amazônia. Ele também vivenciou as chagas da prisão e da tortura.

O episódio vergonhoso da igreja do Pará foi testemunhado pelo então noviço Frei Betto, que estava em Belém para articular a Juventude Estudantil Católica (JEC), como relatou na biografia de Dom Helder Câmara (Helder, o Dom) e na própria autobiografia (Alfabetto). Ele ficou perplexo ao assistir Dom Alberto Ramos anunciar a delação na TV e em seguida foi avisado pelo então bispo auxiliar, Dom Milton Pereira, para fugir da casa do arcebispado onde estava hospedado e depois partir o mais rápido possível de Belém. Foi para Pernambuco, para a posse de Dom Helder Câmara e em particular comunicou a delação. Dom Helder, conhecido até hoje como "bispo vermelho", junto com Dom Pedro Casaldaliga e Dom Fragoso foram líderes denunciantes da Ditadura Militar, apoiadores de sindicatos e líderes perseguidos, mas não foram regra e sim exceção.

Em âmbito nacional a CNBB criticava a prisão de pessoas ligadas a organizações católicas, mas chegou a publicar um documento intitulado "Declaração Sobre a Situação Atual", onde algumas linhas falavam sobre a Ditadura recém-instaurada: "Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e, evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. (...) De uma à outra extremidade da Pátria transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação". Sobre tal discurso, uma palavra: nojo.

Voltando a falar sobre a repressão em Belém, a  posição fascista de Dom Alberto Ramos só ganhou maior repercussão em terras paraenses nas reportagens de Oswaldo Coimbra para o Caderno Amazônia da extinta Província do Pará, o qual não passou da primeira edição, porque pressões de poderosos (incluindo a igreja) forçaram a segunda edição ser arquivada. Oswaldo conta com mais detalhes esse episódio e os desdobramentos disso no livro “A denúncia de Frei Betto contra o arcebispo do Pará em 1964: Dom Alberto Ramos Mandou Prender Seus Padres”, da editora Paka-Tatu, na qual as delações também feitas contra jovens lideranças são contadas. Um material denso e muito bem apurado o qual cada paraense e cada católico deveria ter acesso para saber que a Ditadura Militar não deixou marcas apenas na região do Araguaia. Houve em menor proporção em relação a outras regiões, é verdade, mas aconteceu repressão em Belém, e a igreja católica foi conivente e colaboradora na pessoa do seu maior lider.

Eu não sinto apenas vergonha disso enquanto católico. Sinto revolta. A Igreja Católica Apostólica Romana, como diria Leonardo Boff, é dotada de Carisma e Poder. Consegue ser a igreja de Padre Josimo, de Dom Oscar Romer, Frei Titto e tantos outros religiosos comprometidos com o povo ao ponto de pagarem com a própria vida, mas também é a igreja de um Vaticano onde a gente aplaude de pé quando um Papa comete a "ousadia" de ser humilde (até hoje me impressiono como as pessoas podem se surpreender com isso). Rogo para que o Vaticano um dia seja demolido e as riquezas e terras desta instituição em todo mundo sejam doadas a obras em favor do povo e em honra à alma de tantas e tantos lutadores por justiça social e política no mundo todo. Principalmente em honra a Jesus Cristo, que um dia declarou, segundo a Bíblia organizada pela própria riquíssima igreja católica e tantas outras endinheiradas denominações cristãs usam todo dia: "Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus" (Mt, 19:24). Não existe riqueza sem exploração. Jesus sabia disso. Dom Alberto Ramos, frequentador constante das festas do "Grand Monde", aparentemente não.


sexta-feira, 28 de março de 2014

Quando fui repórter de Polícia - parte 1


JORNALISMO-URUBU

Desde criança sou fascinado por o urubu. Impressionava-me o tamanho daquelas asas pretas com pontas brancas. Não sabia porquê mas ficava um tempão olhando a forma como voava diferente dos outros pássaros, e tinha nojo daquela cara feia, sobretudo quando ficava manchada pelo sangue da carniça devorada. Também era ainda um garotinho quando no início da década de 90 foi ao ar o jornal “Aqui Agora” do SBT. Gil Gomes e companhia popularizaram e consolidaram na TV brasileira uma forma de fazer jornalismo - importada dos istêitis - baseada na superexploração da violência e na criminalização da pobreza para gente na condição de pobre ver. E deu certo. Jornalismo em TV aberta hoje é resumidamente isso. Mas eu desde cedo não assistia. Não ouvia programas de rádio nessa linha. Não lia páginas de jornais ensanguentadas. Não curtia jornalismo-urubu.

Continuo não assistindo e nem ouvindo, mas por 22 meses eu li. Como não ler quando a primeira proposta para trabalhar numa redação de impresso, razão pela qual sonhei me formar em jornalismo, foi justamente pra essa porra? Caí em tentação. Eu pequei por não hesitar em responder sim? Não sei. Agora só consigo lembrar como uma fração de segundo depois de teclar enter no Gtalk dizendo sim pra trabalhar no Caderno de Polícia do Diário do Pará, imediatamente olhei assustado meu nariz crescer e juntar com a boca virando um bico cumprido e curvado na pontinha. Meus cabelos caíram e minha pele do pescoço pra cima enrugou. As pontas das minhas mãos ficaram brancas, depois meus pelos começaram a engrossar a ponto de tornarem-se penas pretas de luto. Minhas pernas afinaram ainda mais, entortaram pro outro lado; meus braços viraram asas e sem muito esforço comecei a voar. Não demorou muito eu comecei a avistar e desejar carniças.

Lá do outro lado da existência caí em tentação pela segunda vez: admirei a beleza, a leveza e a suavidade do voo dozurubus. Urubu não voa, simplesmente, ele divide a mesma maconha com o vento. O ato de voar dele é a tradução avoante de pairar. Lá de cima me impressionei como a incrível possibilidade de cheirar e enchergar com x o alimento mesmo de muito longe. No começo me senti estranho lá no alto. Todos pareciam pensar igual: carniçacarniçacarniça... mas não. Não era bem assim. Eu precisei subir sem redundância pra cima dos outros colegas para encontrar com alguns urubus que veem o choro por trás da morte, os porquês mais profundos dentro dos oquês, o antes e o depois ao olhar o fim. E se não houvesse urubus para testemunhar os descomeços? Caí na terceira tentação: urubus são importantes. Sem nós seria pior. E se eu simplesmente quisesse voar ao lado dos que anseiam circular ao vento no sentido contrário da maioria? Aí vi graça em ser urubu, olha. Descobri enquanto repórter de um caderno que sempre desprezei uma coisa legal: eu posso ser eu mesmo, fincado nos mesmos princípios, sendo o que eu quiser ser. Era legal voar. Meu melhor sonho de criança.

sexta-feira, 14 de março de 2014

DIÁRIO DE UM SERTANEJO - 82º DIA

Mesmo que eu lembrasse o nome daquela estrada carroçal, ou a exata razão de estar ali, isso não importaria agora. Nenhum detalhe técnico é mais importante em relação a qualquer ferida cicatrizada ou não do cachorro vira-lata sobre o qual escrevo agora. Dele sim gostaria de saber o nome. Esta história é sobre um cão cego, provavelmente. Louco, certamente. Ridicularizado por meus amigos e eu, ambos coadjuvantes neste relato feito sobre um cachorrinho que me ensinou coisas de amar e sobre como somos capazes de ser naturalmente escrotos.

Estávamos indo. Não me pergunte pra onde, porque mesmo que lembrasse eu não diria agora. Paramos para pegar informações, diriam os fatos, mas quem acredita nessas coisas de destino diria que só paramos ali para conhecê-lo. Desde o começo ele pareceu engraçado. Marrom, tipicamente vira-lata, carente de banho e de atenção, aparentando já estar algum tempo vivendo a vida adulta e o rabinho cotó. Quando nos viu pela primeira vez o cachorro nos farejava e se lançava a nossas pernas como se não enxergasse. Parecia tentar compensar a falta de visão tentando sentir o nosso cheiro. Já no primeiro contato ele me pareceu engraçado por parecer cego. Eu, que me julgo defensor da inclusão, ri da limitação dele e pedi para os outros rirem.

Precisávamos ir. Dessa parte eu lembro e posso contar: Não sabíamos pra onde. Mas fomos. Largamos o cachorro pra trás como quem joga fora uma meleca do nariz ou como quem vê os mendigos desaparecerem da borda de nossas existências quando o sinal abre. Fomos e não encontramos nada, então voltamos. No retorno, já havíamos passado quase cinco quilômetros do local onde encontramos pela primeira vez o tal cachorrinho. Demos uma parada. Ficamos cerca de dez minutos ali, ou menos, quando avistamos um pequeno borrão lá longe. “É aquele cachorro!”, alguns diziam. Eu não acreditava.

Ora, para ser ele, teria de ter percorrido pelo menos nove quilômetros. Continuamos nossos afazeres enquanto o borrão crescia. Ficava maior, mas não exatamente grande. Deixava de ser um pontinho para se tornar uma mancha marrom. “Era um cachorro”, reconhecemos. “É aquele cachorro!”,exclamei. E rimos de novo quando ele chegou. Balançava o rabinho. Rimos mais ainda ao perceber o mesmo jeito inconsequente de se atirar a nós. O rabinho ainda balançava. Caímos na gargalhada mesmo quando notamos as patas traseiras dele trêmulas após tanto esforço, pois ele não veio simplesmente correndo, correu o mais rápido que pôde. Ele não ligava para a fadiga denunciada pelas patas trêmulas. O rabinho balançava ainda. Parecia querer agradar a gente. O rabinho sempre balançava.

Depois simplesmente entramos no carro e fomos embora. Assim. Esqueci-me dele cinco segundos depois de conversarmos sobre outra coisa menos “hilária”. De noite, porém, antes de dormir, fui contar a história do cachorrinho e chorei. Mas chorei de soluçar. Ia contar a história pelo viés cômico, mas no meio do meu próprio discurso sobre aqueles gestos me dei conta do que realmente vi. Ora, se não tivéssemos parado o carro e permanecido naquele local durante aquele tempo o bichinho jamais nos teria alcançado, e se ele continuava correndo sem saber que pararíamos é porque para ele não importava alcançar, importava mesmo era correr atrás. De quê? De repente eu seja (ir)racional demais pra entender.


Ainda lembro do rabinho cotó dele balançando. Das patinhas trêmulas. Minha dor é saber como a gente nem sempre está ao lado dos bons. Minha alegria é saber que sim, o amor existe, e ele não liga pra essas coisas do impossível, nem pra risada dos ridículos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Canalha - Caça 10

A poça d’água continuava parada enquanto uma moça caminhava distraída na calçada ao lado dela. Atrás da moça um homem vinha ainda mais rápido na direção contrária de um caminhão, ao encontro dela. O caminhão passou, a poça se mexeu e a água invadiu a calçada. Mas a mulher estava longe do alcance da água suja graças às mãos do Canalha. Não havia mais poça e sim uma calçada molhada. E para aquela mulher aquele não era mais um colega de trabalho com fama de galinha, era um colega de trabalho com fama de galinha que sabia pegá-la com força e jeito no braço e tinha um sorriso lindo quando se prestava a ser simpático e não apenas mais um dos meninos gaiatos da empresa.

Ele fez alguma brincadeira sobre a situação de salvamento enquanto ela não prestava a atenção em nada. Alguns segundos antes a garota distraída caminhava com a mente em outro lugar. Reflexiva, recordava como a vida amorosa dela estava em crise. Um rapaz que havia conhecido há dois anos e com quem construíra tantos planos e sonhos estava saindo com outra, conforme ela soube ao ler uma mensagem no celular dele por volta das 6h daquele dia. Uma hora depois andava em conflito consigo, pensando em qual tipo de pessoa ela era antes daquele relacionamento, até o caminhão passar.

Naqueles grandiosos segundos nas mãos de um canalha ela rememorava o quanto gostava de pegadas com força, de tapas na cara, puxões no cabelo e depois fazer o companheiro gozar com fio terra. Mas isso tudo antes de namorar um rapaz cujos pudores o impediam de maiores ousadias na cama. Analisou que antes da mensagem no celular já havia notado um relacionamento esfriando. Vieram-lhe aquelas noites de amor ortodoxas nas quais ela por algum tempo tentou demonstrar sinais de insatisfação, mas ele nunca entendia. Tentava assumir o comando – como gostava de ser a dona da situação –, mas ele nunca deixava. Todavia, era tudo tão bom fora da cama que se prestou a tentar ver algo bom nas duas ou três posições e na rapidez de sempre. Antes aquelas noites frívolas eram compensadas com muita ternura e um namoro bonitinho, mas agora já tinham sabor de quase nada. De obrigação. Então ela fechou os olhos e sentiu a mão do Canalha apertando o braço distraída e deliciosamente.

Estavam meia hora adiantados pro trabalho. Ele estava há dois segundos achando já o comportamento dela muito exótico quando foi abraçado subitamente. Ele também a abraçou, mas do único jeito que sabia. Apertado. Envolvente. E a notou na ponta dos pés. Querendo encostar. Acochar. O Canalha mal começou ficar ereto quando ela o beijou. Ele correspondeu. Ele percebeu que aquilo era sério mesmo quando ela mal encostou os lábios e foi logo lhe enfiando aquela língua grande e Volumosa. Cumprida. Gostosa. Chupou e depois se deixou sugar. Ela quase arranca a língua dele, mas foi bom. Se largaram. Se olharam. Ele a puxou novamente pelo braço. “Meu Deus, o que estou fazendo?”, se perguntou a menina enquanto iam para o carro dele estacionado próximo dali. O veículo tinha vidros suficientemente escuros a ponto de verem o chefe passar enquanto ela o despia da calça. Trocaram algumas carícias intensas e depois ela o mandou deitar. Ele tentou deitar devagar, mas foi empurrado. Sentiu como ela gostaria daquilo e tentou puxá-la, mas a mulher se livrou das mãos dele, suspendeu os braços e disse quase com os dentes travados: “fica assim”. Ele entendeu. Ela queria do jeito dela. Ela ficou mais molhada ainda porque ele não apenas obedecia. Ele correspondia.

Virou de costas pra ele, soltou os cabelos, empinou o bumbum e voltou a cabeça pra trás enquanto se fazia penetrar. Antes, porém, ela esfregou a cabeça do membro dele no clitóris. Esfregou, esfregou, esfregou... “Pega meu cabelo”, falou a mulher depois de sentar em tudo. Ele enrolou na mão e segurou firme as madeixas longas, quase feitas p'raquilo. Puxou levemente e depois com força quando a ouviu sussurrar “puxa direito”. Após cavalgar sozinha, rebolando e pressionando a região clitoriana como queria no pau dele ela levantou e pediu pra ele se sentar. Deitou-se ela e pediu pra ele vir. Tentou ir devagar, imitando o que ela fizera anteriormente, mas a dona não queria assim. “Vem”, disse com uma voz de repreensão se inclinando e puxando-o pela bunda. Com as mãos ela ditou o ritmo do quadril dele, enquanto ela se curvava, se espremia na lateral do carro e arreganhava as pernas. O máximo. “Me bate!”. Ele batia. “Mais forte!”. Ele batia. “Me morde!”. Ele mordia. Ela gozou mordendo os lábios e revirando os olhos. O Canalha ainda queria mais quando ela pediu pra parar. Ele tentou ainda insistir, mas ela olhou bem sério. Ele obedeceu.

Chegaram ao trabalho suados e descabelados. Ela com as duas maçãs do rosto levemente rosadas após algumas tapas e ele com a blusa pra dentro porque a bainha estava melada da lubrificação da moça. Mas ninguém desconfiou porque os dois eram muito distantes o tempo todo. Ela voltou naquele dia pra casa mais calma, teve uma boa conversa e ainda ficou um ano com aquele namorado depois de perdoá-lo. O Canalha, porém, sabia que alguma coisa estava ruim com ela quando era procurado, sempre subitamente, sempre intensamente. Ele não se importava com o silêncio de todas as vezes. Não se importava em ser usado. Descobriu ter tara na tara dela.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Galos, Noites e Quintais - Aventura 5

Minha infância na periferia de Belém é analisada por mim muitas vezes a partir de um olhar sociológico e pedagógico. Mas se pudéssemos voltar no tempo e perguntar ao menino Eraldo Paulino, na época conhecido como Agô, ele provavelmente responderia com um sorriso fácil e tímido que se divertia muito. Foi um período recheado de brincadeiras que a gente construía junto com a turma, coletivamente, de forma autônoma, e algumas vezes longe dos adultos, de preferência. Como já contei antes, a iniciação sexual das crianças, pelo menos na minha época, era feita de forma lúdica, com dinâmicas feitas por nós e para nós mesmos. A primeira descoberta desse universo afetivo e erótico foi bem cedo, quando tinha cinco anos. Eu conto.

Estávamos nos enturmando com os novos colegas do então bairro da Guanabara, meus irmão e irmã mais velhos e eu. Decidimos brincar “Pira-se-esconde”, conhecida mais como “esconde-esconde” por aí. Estávamos num grupo de cerca de 10. O mais velho de nós deveria ter no máximo 10 anos. Escolhemos uma construção abandonada como local para esconderijos. O lugar estava um pouco sujo, tinha a alvenaria quase completamente levantada, mas não havia reboco nem portas, embora alguns cômodos estivessem cobertos.

Já na primeira rodada, enquanto contava até 10 a “mãe” (Como chamávamos quem deveria procurar a turma) todo mundo se escondia eu fiquei parado. Estava achando ótimo estar ali, mas naquele momento descobri não saber brincar direito daquilo. De repente fui ajudado por uma menina cujo nome não revelarei. Segurando meu braço me levou pra uma das salas. Estava Escura. Ela pediu silêncio. Deu uma olhada lá fora pra saber se vinha alguém enquanto eu estava nervoso. Não queria perder, embora não soubesse como ganhar. Ela me encostou perto dela. Me senti protegido. Depois ela começou a me beijar.

Ela deveria ter uns 09 ou 10 anos. Eu fiquei estático enquanto ela me dava beijos e beijos. Não eram de língua. Eram selinhos. Seguidos. Muitos. Na bochecha também, por todo o rosto, mas principalmente na boca. Ela era afoita. Parecia estar querendo aquilo a algum tempo. E tinha mais. Ela se abaixava e se esfregava em mim. Várias vezes. Tinha pegada. Devo dizer que fui ter noção básica de sexo uns três anos depois daquilo. Não entendia nada, portanto, mas lembro de ter ficado excitado na ocasião. Quatro centímetros de pinto duro.

Aquilo durou alguns estranhos e gostosos minutos, durante algumas rodadas, até sermos interrompidos pela mãe. Não a da brincadeira. A literal. A minha. Foi tenso. De repente comecei a me perguntar se estávamos fazendo algo errado porque o clima ficou bem pesado. Foi uma tarde muito confusa. Foi do extremo da libido ao extremo de repressão. Ambos incompreensíveis. Mamãe não repreendeu meu irmão ou eu, só minha irmã. Não sei se a mana passou por algo semelhante em outra sala escura durante a  brincadeira, mas não conseguia entender (e até hoje não entendo) porque uma menina poderia me beijar e minha irmã não poderia beijar e ser beijada.

Como D. Fátima suspeitou de algo erótico numa brincadeira onde só estavam crianças? Porque ela também brincou da mesma coisa, será? Não sei. Mas a partir dali, pra mim, brincar de beijar não pareceu diferente de nenhuma outra brincadeira, só precisava ser escondida pra depois não ficar chato. Eu gostava. Brincar era legal. Beijar era legal. Transgredir era legal.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Eu fotografei o silêncio

Encontrei Nicole, uma flor paraense de Paragominas, no Sertão dos Inhamuns-Crateús, bem no coração do semiárido cearense. Eu não sou fotógrafo profissional, e nem me considero um amador bom, mas percebi como há pessoas que ganham naturalmente a simpatia das câmeras. Essa moça linda de cinco anos é uma delas. Eu a encontrei numa mesa de negociação na comunidade Malhadas, em Quiterionópolis - CE, e fiz um clique. Fiz outro. As fotos iam ficando boas. Eu olhava pra ela e dizia com meu riso pidão o quanto queria fotografar mais. Ela me olhava de volta. Esperava eu chamar e ia sorrindo pra onde eu indicasse. Ela sempre queria ser fotografada mais e mais e mais e mais.. Sem nenhum de nós falar muita coisa, percebemos como era divertido brincar daquilo. E fui clicando e ela foi sorrindo, pulando, fazendo pose, caras e bocas. Eu me derretia por completo quando ela olhava as fotos para as quais posou e... simplesmente sorria. Ela só sorria. E cada sorriso me dizia uma coisa diferente. Ela não falava com a boca, mas com todo o resto do corpo. Essa menina é um cinema mudo. Como diria Manoel de Barros, "É difícil fotografar o silêncio".

























quarta-feira, 20 de novembro de 2013

EU TENHO CARA DE LADRÃO




Mami e eu. Foto de Celso Rodrigues

Era um fim de tarde típico de Belém. Minha irmã Iaiá, nossa amiga Jaci e eu devolveríamos uns filmes à locadora que ficava no subsolo do shopping Castanheira, próximo de casa. Um centro comercial luxuoso rodeado de periferias, inclusive o bairro onde cresci. Pra nós qualquer rua asfaltada parecia praça, quem dirá um lugar como aquele. Lembro de ter ido muitas vezes até lá com os colegas só pra brincar de se esconder, ou simplesmente pra andar por ali, pois tudo era muito caro, e quase não tínhamos como comprar nada. Naquele dia não foi diferente. Após devolvermos os VHSs fomos caminhar, viver naquele espaço nosso momento de lazer.


Entramos na loja Yamada, que é bem popular, e nisso encontramos um pacote de chocolate mm largado sobre uma prateleira da sessão de móveis. Estava aberto. Alguém comprou e esqueceu ali. Ficamos alguns minutos nos perguntando se pegaríamos ou não. Jaci insistiu que deveríamos. Pegamos. Fomos pegos em seguida. Um homem engravatado nos segurou pelo braço e nos levou a um corredor próximo dali. Com outros clientes nos olhando, como se fôssemos marginais, fomos interrogados. Tratados como ladrões. “Nós temos filmagens de vocês roubando isso”, falava o engomado. “Então pega lá a filmagem”, desafiei. O homem me olhou feio e exigiu que eu não me rebarbasse. O chicote doeu no meu coro. Me calei.


Hoje, pensando melhor, sei bem. Eles perceberam que não roubamos. Aquela loja não vendia chocolate, nem qualquer coisa que não fossem artigos de magazine. Ele ameaçou ir com a polícia na porta de casa se não trouxéssemos dinheiro no dia seguinte. Disse que aquele bombom custava o que hoje equivaleria a 20 conto. Tivemos de raspar todas as nossas economias pra "pagar" aquela quantia sem nossos pais saberem. Foi a primeira vez que percebi uma coisa: tenho cara de ladrão. Depois, inclusive como repórter, muitas vezes quiseram me prender junto com os caras que entrevistava. Ir trabalhar sem crachá era ruim. Ninguém acreditava que alguém como uma cara como a minha pudesse ser jornalista


Em 2011 fui à Espanha. Parei num orelhão de Madri pra falar com o povo de casa. Um homem veio. Me olhou de cima a baixo. Achei que era gay. Continuei. Outro veio. Me olhou mais ainda. Comecei a ficar preocupado. Continuei falando, mas agora me esforçando pra não transmitir preocupação ao outro lado da linha – minha mãe morreria. Quando me olhou o terceiro avisei que precisava desligar. Minhas pernas já estavam trêmulas. Estava longe da minha comitiva. E sabia qual olhar era aquele. Após desligar veio um guarda. Me pediu desculpas pelos olhares. Disse que ali perto anos antes haviam explodido uma estação de metrô. Dessa vez me confundiram foi com terrorista mesmo.


Tenho essa cara de ladrão não pelo sangue de descendente de portugueses oriundo de papai, mas pelo sangue africano da minha mãe. Eu sou descendente de escravos. Sou preto. Historicamente preto, de beiço grande e cabelo crespo. Da periferia ocupada por ex-escravos. Libertos sem qualquer direito à dignidade. Minha pele não tem tanta melanina e alguns me confundem com branco. Mas branco não tem cara de ladrão. Eu tenho. Sou um jornalista com cara de ladrão. As pessoas se acham inteligentes quando rotulam as pessoas assim. Eu nunca roubei. Nunca matei. Sou trabalhador. E tenho cara de ladrão. E seu racismo com isso?