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Sou da periferia, prefiro ser chamado de preto a
moreno, não tenho problema nenhum em declarar quando acho outro homem bonito,
mas, confesso, até hoje não me acostumei com o rótulo de “Repórter Policial”
que me dão, devido trabalhar no caderno de Polícia de um jornal diário
do Pará há um ano. Ser repórter dessa editoria quer dizer, por exemplo, que se
trabalhasse no Rio Grande do Sul eu provavelmente teria participado da
cobertura da tragédia que já matou até agora 235 e deixou outros 118 jovens
feridos em Santa Maria/ RS por conta de um incêndio na boate “Kiss”. Lidar com
números e informações fortes como essas, acompanhar imagens tensas assim – in
loco – e me perguntar todo dia se essas coisas valem a pena é o que tenho feito
durante esse tempo. Eu, que jogava esse caderno policial no lixo antes de
folhear qualquer jornal, que classificava esse tipo de publicação como JA -
Jornalismo Abutre, hoje defendo que a editoria policial não deve acabar tal
como precisa ser, e sim tal como é.
Como exercício mental, não de quem precisa de um
emprego, mas de quem precisa se sentir importante para a sociedade no que faz, resolvi criar em minha mente um mundo
imaginário sem os cadernos de polícia. Cheguei à conclusão de que seria o
cúmulo da banalização da vida quando assassinato cometido nas periferias da
nação parar de render manchetes, ou quando a morte não for mais notícia. Aliás,
é impossível desligar esse debate da questão da criminalização das periferias,
ou do racismo propriamente dito. Para mim, a origem de todas as brincadeiras de
mau gosto e de toda abordagem desrespeitosa que se faz nessa editoria vem
justamente do desrespeito ao valor da vida dos empobrecidos, principalmente
negros. Já vi uma jornalista perguntar ao delegado, após mais uma morte na favela, com as seguintes palavras: “Uma vez que a ficha policial desse
elemento era extensa, podemos dizer que é ‘menos um’ pra perturbar”? Ela nunca
perguntaria isso se fosse o homicídio de um deputado corrupto branco.
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Imagem compartilhada no Facebook demonstra até que ponto o preconceito favorece o desrespeito à vida. |
Enquanto a morte nas periferias ganham títulos derivados de + 1, são as mortes dos filhos da classe média que costuma
ser espetacularizadas. Nesses episódios percebemos o quanto a curiosidade
mórbida independe de classe social. Tanto em mortes de viciados negros quanto
de estudantes brancos há jornais que vendem como água imagens que mais parecem
parte de documentários de autópsia ou fotos de peritos do IML. Percebe-se
também que a exploração da morte, da tragédia, da crueldade, é algo que
definitivamente interessa às pessoas. Aceitar isso, aliás, foi o primeiro
choque de realidade que levei no meu trabalho.
A ROTINA DA REPORTAGEM
A tarefa diária do jornalista de “Polícia” é correr
atrás de notícia. Ao contrário das outras editorias, nós dificilmente saímos da
redação com algo planejado. As coisas vão acontecendo e a gente tem que criar
mecanismos para não perder nenhuma notícia. Possuir fontes no IML, e entre a
população é fundamental. Mas nenhuma fonte é mais segura do que a polícia. Por
isso existe historicamente nas editorias policiais de todo o Brasil uma relação
muitas vezes promíscua entre repórteres e policiais. Diante de nós repórteres,
toda sorte de abuso é compartilhada, há jornalistas que até mesmo batem em
presos. Até mesmo a linguagem adotada no meio dá a exata ideia dessa relação. O
ato de ir atrás de notícias nessa editoria chama-se “Ronda”, por exemplo.
Voltando a falar sobre morte, hoje posso dizer que
consegui criar um mecanismo mental que me permite encarar qualquer tipo de
imagem de pessoas mortas durante o trabalho. Alguns colegas meus defendem que
não é necessário ver o corpo para escrever a matéria, mas eu discordo. O que
faz um bom texto é a apuração, e às vezes um detalhe na cena do crime é o
elemento mais importante da história a ser contada. Mas o que me faz perceber
que eu ainda sou eu, como o peão para os personagens imersos em sonhos no filme
“A Origem”, é a compaixão pelos que ficam. No dia que eu parar de ficar com nó
na garganta quando percebo que aquilo que escrevo significa uma perda irreparável
para muitas pessoas, certamente demonstrará que passou da hora de eu abandonar
essa editoria.
Por isso penso que o caderno de polícia já começa
errado pelo nome. Os jornalistas dessa editoria não deveriam agir como se
fossem assessores de comunicação da PM. A linha de pensamento que move
abordagens preconceituosas, racistas e que no fim das contas acaba por
incentivar o ódio e a intolerância que geram violência letal é que precisa ser
revista antes de tudo. Perceber que mesmo um ladrão, um estuprador ou um
assassino de criança também é um ser humano, que existe um contexto sócio-político
por trás dos homicídios nas periferias é algo que requer um mergulho muito além
da superfície, o qual nem todos estão dispostos a fazer. Afinal de contas,
compreender o processo não vende jornal, não rende status, continuar fazendo o
que se faz sim. Mas, acredito, é possível prender a atenção das pessoas,
vender, sem vender a alma. Vi muitos comentários interessantes a respeito de
muitos textos a respeito da tragédia gaúcha – e brasileira – demonstrando que é
possível re-humanizar o jornalismo sem perder a clientela.
Não, eu não acredito que isso vá mudar amanhã, mas
penso que até lá, quem realmente discorda dessa linha não precisa esperar o
dono do jornal passar por algum tipo de epifania para seguir os próprios
princípios. A partir de pequenos gestos, como por exemplo ouvir o que os
suspeitos têm a dizer, ao invés de escrever “populares” escrever “pessoas”, ao
invés de dizer “bandido morto” escrever “vítima”, o olhar já pode ser
modificado. O Brasil é considerado o maior país católico do mundo, possui um
grande número de protestantes, mas não consegue ser cristão na hora de pensar
em soluções para a violência além de punir. A pena de morte em nosso país é uma
realidade velada, cujos juízes são os policiais e os advogados são os
jornalistas omissos diante disso.
Rogo para que um dia os cadernos e as editorias que lidam com
situações de morte possam ter como chavões não mais palavreados importados dos
quartéis, e sim dos jardins. E como quem não precisa esperar o carnaval pra
poder sambar, eu vou escrevendo como acredito que tenha que escrever, assim como outros bravos colegas. Portanto, é preciso evitar o olhar maniqueísta dos grandes jornais, porque nele há pessoas sensíveis e que quando são competentes conseguem fazer um trabalho digno. Defendo a humanização dos cadernos de polícia, e penso que o título da editoria também poderia ser revista, mas discordo de quem pensa que eles não deveriam existir.
Parafraseando Vinicius de Moraes: “Cadernos de Polícia? Melhor não termos. Mas
se não temos, como sabê-lo?”