Hoje o "Eraldo e suas paulinisses" completa exatamente um ano. Como presente, apresento o texto mais difícil que já escrevi em todo esse ano. Ensaiei escrever sobre isso mais de dez vezes, mas jamais consegui, pois eu poderia não estar aqui hoje, já cogitaram me abortar, e, além disso, sei que toco aqui em assuntos que sensibilizam a todos: Criança e Mãe. Tentando "sentir com inteligência e pensar com emoção" (Letra de Gessinger) escrevi o presente... Vamos ao debate:

Sou católico, mas também faço parte de um grupo de religiosos que defendem o diálogo inter-religioso, e fazer um diálogo com pessoas diferentes só é possível se a pessoa, munido de plena convicção em relação a sua fé, tem a civilidade de entender que a outra pessoa tem o direito de não ter a mesma fé. Mais do que isso, tanto os princípios do religioso como de qualquer ateu, devem estar voltados para a justiça e à valorização da vida e do bem estar de todos/as se quiserem seguir a trilha do bom senso, e para isto, inexoravelmente, cada um e cada uma deve estar pronto/a para abrir mão de algo pelo bem de todos, ou seja, por aquilo que é mais justo.
Falei tudo isso até agora para dizer que, mesmo sendo católico, sou contra a aprovação do estatuto do nascituro em tramitação da Câmara do Deputados. O estatuto, se aprovado, cometeria uma grande injustiça contra as mulheres e contra o princípio da laicidade do Estado brasileiro. O estatuto visa proteger os não nascidos desde a sua concepção, e com isso, mulheres vítimas de estupro e/ou correndo risco de morte por conta da gravidez estariam proibidas de interromper a gestação, sem falar no uso da pílula do dia seguinte que também seria considerado crime.
Segundo prevê o estatuto, para as mulheres estupradas, o estuprador deverá pagar uma espécie de "bolsa estupro", ou seja, uma pensão alimentícia para a criança até que ela complete 18 anos, ou caso o mesmo seja desconhecido ou encontre-se preso, o estado assumirá o ônus, assim como mães de filhos anecéfalos (crianças sem cérebro), deverão levar gestação até o fim, mesmo sabendo-se que a criança certamente morrerá horas depois de nascida. Criar uma relação absurda da mãe com o estuprador e submeter mulheres a passarem por uma experiência de gravidez que não desejam seria realmente necessário, se considerarmos que a vida humana começa indubitavelmente a partir da concepção, no entanto, essa é uma tese defendida por alguns cientistas e é sustentada por (grande parte dos) cristãos, mas, absolutamente, não é um consenso nem na esfera científica e muito menos entre as demais pessoas - até mesmo a Igreja Católica já teve um posicionamento diferente desse há séculos atrás.
Entre os brasileiros, por exemplo, a tese mais aceita a respeito do que seja de fato a vida humana reside no pleno funcionamento do sistema nervoso - especialmente do cérebro. Baseados nesse princípio, não achamos uma crueldade a doação de órgãos. Hora, compreende-se como morte cerebral a morte do ser humano em si, ainda que os outros órgãos do corpo ainda funcionem. Por isso, há quem defenda que da mesma forma como não é crime retirar órgãos de pessoas com morte cerebral, não é crime interromper a gravidez antes do sistema nervoso do feto estar plenamente formado. E esta é somente uma das teses a respeito de quando inicia a vida. Quem vai dizer o que é certo? Nesse caso, o único argumento incontestável é que não há argumento incontestável. Apesar dos argumentos contra o aborto (com certa razão) valerem-se de artifícios que mecham mais com a sensibilidade, a Igreja e os contra o aborto cometem o grave erro de satanizar quem é pró-aborto, e quem é a favor, costuma subestimar a inteligência de quem é contra. Sei que provavelmente estes grupos divergentes jamais chegarão a um acordo, mas sem dúvida esta visão maniqueísta de parte a parte não é a saída para mal algum.
Quem pode atirar a primeira pedra em uma mulher que não quer ter o filho do cara que a estuprou? Quem pode atirar a primeira pedra na mulher que não quer morrer antes mesmo do parto? Quem pode atirar a primeira pedra na mulher que, se errou em transar sem camisinha errou em dupla, mas sozinha terá que arcar com as consequências? Quem pode atirar a primeira pedra em quem entende diferente a origem da vida? O aborto, para as mulheres normais, é por si só uma experiência traumática e/ou perigosa. É evidente que as mulheres sempre evitarão passar por isso. Rotular a mulher que interrompe a gravidez de assassina é uma possibilidade, sim. Pode ser considerado abominável, sim. Mas também pode não ser. Entender isso poderia fazer com que as igrejas e os contra aborto fizessem campanhas educativas para as suas, ao invés de ficar criminalizando e oprimindo as mulheres que não estão ao seu lado nisso. Afinal, segundo os preceitos cristãos, não se combate mal com mal. Maltratar a mulher que aborta não trará o feto de volta, ao contrário, a misericórdia é a maior arma para desarmar qualquer mal que se acredite haver.
A descriminalização poderia favorecer, sim, àquelas mulheres sem escrúpulos que poderiam sair transando sem camisinha indiscriminadamente sabendo que o aborto estaria garantido caso engravidasse, ainda que transar sem camisinha e o próprio procedimento possam acarretar consequências irreversíveis para a sua vida, mas, não é salutar pensar nos insanos quando estamos decidindo uma lei. Seria como condenar o Bolsa Família só porque há pessoas que recebem e não precisam, ou porque há gente que sai por aí fazendo filho pra ganhar mais dinheiro. Que o programa se acabe ou modifique-se por outros motivos, mas não por estes, porque sabemos que a maioria dos que recebem precisam, e seria injusto acabar com um programa porque alguns fazem mal uso deste, pois a melhor saída para isto é melhorar o monitoramento ou tornar o programa menos eleitoreiro. Da mesma forma, seria absurdo a liberação do aborto ou de qualquer procedimento envolvendo a saúde pública sem os devidos mecanismos de controle e sua consequente fiscalização.
A criminlização do aborto é uma questão de saúde pública. Sabe-se que em todo Brasil milhares de clínicas fazem esse tipo de cirurgia sem qualquer regulamentação. Pelo menos 1 milhão de mulheres praticam aborto por ano, e cerca de 400 mil acabam com sequelas irreversíveis ou morrendo no processo. Quem pode pagar, faz um procedimento seguro. Quem não pode (a maioria), se submete à mão de açougueiros e pílulas ilegais. O estado deveria garantir o direito de ser, pensar, e agir diferente, desde que isto não fira a Constituição, como fere o ato de instituir leis baseados em fundamentos religiosos desobedecendo o princípio do livre pensar e da livre profissão de fé de um estado laico. Qualquer lei (somente) deve estar de acordo com a Constituição, que é um primoroso fruto da construção coletiva de diferentes grupos da sociedade, inclusive das Comunidades Eclesiais de Base.
Os cristãos, especialmente, têm todo direito de ser apreensivos quanto ao pluralismo no qual se envolve a cada dia a sociedade atual. No entanto, o pluralismo já está assegurado na Constituição. E, se para as algumas religiões é importante evitar o pluralismo que fragmente seu código moral ou seus princípios, para a salada mista que é o Brasil seria desastroso atender a somente um desses grupos. Por isso, sou a favor da permanência da lei a respeito do aborto como ela está, e, caso a prática seja liberada, que garanta-se a livre manifestação dos contrários e as devidas regras para garantir o direito pleno e sagrado da mulher decidir.
Sou católico, mas também faço parte de um grupo de religiosos que defendem o diálogo inter-religioso, e fazer um diálogo com pessoas diferentes só é possível se a pessoa, munido de plena convicção em relação a sua fé, tem a civilidade de entender que a outra pessoa tem o direito de não ter a mesma fé. Mais do que isso, tanto os princípios do religioso como de qualquer ateu, devem estar voltados para a justiça e à valorização da vida e do bem estar de todos/as se quiserem seguir a trilha do bom senso, e para isto, inexoravelmente, cada um e cada uma deve estar pronto/a para abrir mão de algo pelo bem de todos, ou seja, por aquilo que é mais justo.
Falei tudo isso até agora para dizer que, mesmo sendo católico, sou contra a aprovação do estatuto do nascituro em tramitação da Câmara do Deputados. O estatuto, se aprovado, cometeria uma grande injustiça contra as mulheres e contra o princípio da laicidade do Estado brasileiro. O estatuto visa proteger os não nascidos desde a sua concepção, e com isso, mulheres vítimas de estupro e/ou correndo risco de morte por conta da gravidez estariam proibidas de interromper a gestação, sem falar no uso da pílula do dia seguinte que também seria considerado crime.
Segundo prevê o estatuto, para as mulheres estupradas, o estuprador deverá pagar uma espécie de "bolsa estupro", ou seja, uma pensão alimentícia para a criança até que ela complete 18 anos, ou caso o mesmo seja desconhecido ou encontre-se preso, o estado assumirá o ônus, assim como mães de filhos anecéfalos (crianças sem cérebro), deverão levar gestação até o fim, mesmo sabendo-se que a criança certamente morrerá horas depois de nascida. Criar uma relação absurda da mãe com o estuprador e submeter mulheres a passarem por uma experiência de gravidez que não desejam seria realmente necessário, se considerarmos que a vida humana começa indubitavelmente a partir da concepção, no entanto, essa é uma tese defendida por alguns cientistas e é sustentada por (grande parte dos) cristãos, mas, absolutamente, não é um consenso nem na esfera científica e muito menos entre as demais pessoas - até mesmo a Igreja Católica já teve um posicionamento diferente desse há séculos atrás.
Entre os brasileiros, por exemplo, a tese mais aceita a respeito do que seja de fato a vida humana reside no pleno funcionamento do sistema nervoso - especialmente do cérebro. Baseados nesse princípio, não achamos uma crueldade a doação de órgãos. Hora, compreende-se como morte cerebral a morte do ser humano em si, ainda que os outros órgãos do corpo ainda funcionem. Por isso, há quem defenda que da mesma forma como não é crime retirar órgãos de pessoas com morte cerebral, não é crime interromper a gravidez antes do sistema nervoso do feto estar plenamente formado. E esta é somente uma das teses a respeito de quando inicia a vida. Quem vai dizer o que é certo? Nesse caso, o único argumento incontestável é que não há argumento incontestável. Apesar dos argumentos contra o aborto (com certa razão) valerem-se de artifícios que mecham mais com a sensibilidade, a Igreja e os contra o aborto cometem o grave erro de satanizar quem é pró-aborto, e quem é a favor, costuma subestimar a inteligência de quem é contra. Sei que provavelmente estes grupos divergentes jamais chegarão a um acordo, mas sem dúvida esta visão maniqueísta de parte a parte não é a saída para mal algum.
Quem pode atirar a primeira pedra em uma mulher que não quer ter o filho do cara que a estuprou? Quem pode atirar a primeira pedra na mulher que não quer morrer antes mesmo do parto? Quem pode atirar a primeira pedra na mulher que, se errou em transar sem camisinha errou em dupla, mas sozinha terá que arcar com as consequências? Quem pode atirar a primeira pedra em quem entende diferente a origem da vida? O aborto, para as mulheres normais, é por si só uma experiência traumática e/ou perigosa. É evidente que as mulheres sempre evitarão passar por isso. Rotular a mulher que interrompe a gravidez de assassina é uma possibilidade, sim. Pode ser considerado abominável, sim. Mas também pode não ser. Entender isso poderia fazer com que as igrejas e os contra aborto fizessem campanhas educativas para as suas, ao invés de ficar criminalizando e oprimindo as mulheres que não estão ao seu lado nisso. Afinal, segundo os preceitos cristãos, não se combate mal com mal. Maltratar a mulher que aborta não trará o feto de volta, ao contrário, a misericórdia é a maior arma para desarmar qualquer mal que se acredite haver.
A descriminalização poderia favorecer, sim, àquelas mulheres sem escrúpulos que poderiam sair transando sem camisinha indiscriminadamente sabendo que o aborto estaria garantido caso engravidasse, ainda que transar sem camisinha e o próprio procedimento possam acarretar consequências irreversíveis para a sua vida, mas, não é salutar pensar nos insanos quando estamos decidindo uma lei. Seria como condenar o Bolsa Família só porque há pessoas que recebem e não precisam, ou porque há gente que sai por aí fazendo filho pra ganhar mais dinheiro. Que o programa se acabe ou modifique-se por outros motivos, mas não por estes, porque sabemos que a maioria dos que recebem precisam, e seria injusto acabar com um programa porque alguns fazem mal uso deste, pois a melhor saída para isto é melhorar o monitoramento ou tornar o programa menos eleitoreiro. Da mesma forma, seria absurdo a liberação do aborto ou de qualquer procedimento envolvendo a saúde pública sem os devidos mecanismos de controle e sua consequente fiscalização.
A criminlização do aborto é uma questão de saúde pública. Sabe-se que em todo Brasil milhares de clínicas fazem esse tipo de cirurgia sem qualquer regulamentação. Pelo menos 1 milhão de mulheres praticam aborto por ano, e cerca de 400 mil acabam com sequelas irreversíveis ou morrendo no processo. Quem pode pagar, faz um procedimento seguro. Quem não pode (a maioria), se submete à mão de açougueiros e pílulas ilegais. O estado deveria garantir o direito de ser, pensar, e agir diferente, desde que isto não fira a Constituição, como fere o ato de instituir leis baseados em fundamentos religiosos desobedecendo o princípio do livre pensar e da livre profissão de fé de um estado laico. Qualquer lei (somente) deve estar de acordo com a Constituição, que é um primoroso fruto da construção coletiva de diferentes grupos da sociedade, inclusive das Comunidades Eclesiais de Base.
Os cristãos, especialmente, têm todo direito de ser apreensivos quanto ao pluralismo no qual se envolve a cada dia a sociedade atual. No entanto, o pluralismo já está assegurado na Constituição. E, se para as algumas religiões é importante evitar o pluralismo que fragmente seu código moral ou seus princípios, para a salada mista que é o Brasil seria desastroso atender a somente um desses grupos. Por isso, sou a favor da permanência da lei a respeito do aborto como ela está, e, caso a prática seja liberada, que garanta-se a livre manifestação dos contrários e as devidas regras para garantir o direito pleno e sagrado da mulher decidir.