Nove graus na praia de Copacabana e meu corpo amazônida lá,
brigando com a temperatura durante a vigília com o Papa Francisco. Desde que o calor começou a sumir
vertiginosamente era em minha bexiga onde se concentrava a mais ardente zona de
combate. Não havia banheiro suficiente graças a Eduardo Paes, e o jeito foi
mijar no mar. Que bonita era aquela curva provocada pelo vento no líquido que
deliciosamente saía de mim quando de repente uma onda desgraçada veio mais forte do que
deveria. Eu consegui me equilibrar em pé, e ainda tinha muito a expelir quando a
onda finalmente se foi e me deixou as calças encharcadas. Pelo menos eu estava
com frio demais para sentir qualquer constrangimento pelas risadas. Só
de bermuda, naquela praia de agasalhos, eu me deitei pra ouvir a juventude dar
testemunho ao sumo pontífice.
Começou um após outro jovem branquinho e fresquinho a falar
mensagens tão emocionantes quanto o roteiro de um filme piegas pode ser. O povo
fazia sinal da cruz, se ajoelhava, aplaudia, eu só conseguia ouvir
baboseiras inúteis como “eu sou virgem”, “eu não uso mais drogas”, “fui a cinco
jornadas”, e por aí vai. Tentei dormir pra ver se a coisa ficava menos pior. Me
embrulhei no cobertor mais grosso disponível e o vento gelado parecia rir de mim. A essa
altura não sei se tremia de frio ou de raiva pelos aplausos homenageando as
porcarias que aqueles jovens com alma de velhos falavam.Me levantei. Puto. Como a desorganização da JMJ 2013 fez com que a vigília fosse realizada em local sem a menor estrutura, não havia demarcação de corredores, assim a galera foi se apropriando do lugar. E enquanto o Papa estava no palco travestido de altar era impossível passar, porque ninguém queria sujar de areinha os colchões. Eu saí invadindo, ou melhor, ocupando terreno a terreno. Pulando cercas de areia, e quando em espanhol, inglês ou mongol alguém reclamava de invasão de "propriedade", eu dizia que estava sendo chamado pelo Espírito Santo. Peguei um atalho pela beira do mar, que depois de me molhar parecia satisfeito e se manteve distante. Cheguei ao palco, mas alguns seguranças me impediam de entrar. Então ameacei dar porrada num dos jovens quase catatônicos a ouvir aqueles malditos testemunhos, e num olé homérico ao guarda corri para dentro.
Não sei quantas mãos me puxaram, nem quantas pernas me
chutaram. O fato é que eu subi lá naquele palco que mudava de cor, e era maior de perto do que parecia pelo telão. O papa não aparentava medo, mas o
jovem falando compassadamente com aquele ar de “renovado” começou a tremer. Deve
ter sido por causa da minha cara de pivete. “Perdeu, playboy. Passa o microfone”,
gritei com a mão por dentro da blusa. “Boa noite, galera! Vim aqui dar meu
testemunho”, gritei eu competindo com uma enorme microfonia. Os seguranças já se armavam
para me bater, a guarda nacional se preparava pra atirar e o povo já fazia
biquinho pra vaiar quando Francisco levantou a mão direita. Em espanhol disse alguma
coisa parecida com “calem a boca, pois quero ouvir esse jovem”. Eu quase choro com a emoção de não apanhar nem morrer, mas juntei minhas forças.
Foi esse o meu discurso:
Eu sou um pivete, um pichador de muro. Um negro que passou
uma temporada no presídio antes de finalmente ser exterminado. Sou um camponês oriundo de minha cidade com terra e cerca demais e justiça de menos, com
vontade desesperada de sobreviver. Sou gay desde de nascença, humilhado desde que
me entendi, e mentiroso desde após a crisma para poder continuar na igreja. Eu
fumo maconha todos os dias, e ela não me faz mal. Não faz porque foi na igreja
que experimentei pela primeira vez. Nela descobri o que há de mais podre
e mais santo, e foi através dela que enxerguei sentido à minha vida de
opressão. Percebi como a droga do capitalismo e a mentira do consumismo são os únicos entorpecentes a serem criminalizados.
Eu faço sexo todo dia com minha namorada. E sempre
foi ótimo, olha. Vocês aí que ainda são virgens, recomendo muito. Qualquer dúvida perguntem a algum padre, porque eles também fazem sexo sempre que podem. E antes de começarem a vaiar e jogar pedras, gostaria de perguntar uma coisa a vocês. O
tempo que vocês ficam batendo punheta, se enganando que vão pro céu por não
chamar palavrão, por que vocês não se dedicam a uma missão mais interessante?
Só nesses minutos no qual discurso pelo menos um jovem foi executado no
Brasil. Somos uma multidão de três milhões de pessoas num local escroto, sem
banheiro e sem condições, um exemplo do que esse povo carioca e esse povo
brasileiro passa diariamente por conta da má fé desses governantes filhos da puta.
Querem sentir o Espírito Santo? Então vamos agora marchar
até a prefeitura, arrebentar os portões como Jesus arrebentou as barracas dos
mercadores do templo. Ocupar e fazer vigília lá, e dizer que só desocuparemos quando o prefeito renunciar, uma nova eleição for marcada e prometeremos que voltaremos a ocupar aquele lugar se os candidatos forem mais do mesmo. Vamos deixar
um grande exemplo pras juventudes do Brasil e do mundo e mostrar que só rezar por
um mundo melhor não é suficiente. Quis Deus que a JMJ ocorresse em Madri quando
os indignados foram às ruas, e agora no Brasil quando o povo bradou um mundo
novo. Isso sim é um sinal, não uma dor de cabeça que passa ou um bissexual que
casa com mulher e mente dizendo que deixou de ser gay.
Como querem ir pro céu sem antes ir viverem aqui na terra a santa experiência de irem à luta...
Não posso dizer se o Papa aplaudiu. Se o povo que estava
paralisado se mexeu, se os que estavam cegos enxergaram ou se os mudos
finalmente falaram. Eu morri antes de ver, mas pelo menos vivi antes do fim.